A História de Um Fio
de Patrícia Lameida
O fio vermelho foi retirado, com o cuidado que a experiência lhe permitia, da bainha do último casaco sem manchas. A área foi escolhida por saber que a conseguiria remendar com qualquer outro fio sem se notar, e foi assim que, depois de ter cortado o fio vermelho, ela remendou o lanho com um pedaço de lã que começara por ser camisola, passara a cachecol depois de manchada, a par de meias quando o cachecol se tornou pequeno, até se tornar fio de arranjos quando as meias ficaram rotas. Uma arte delicada, um dom que aprecio.
Não estancou as lágrimas em todo o processo, sentindo-as mais grossas enquanto amarrava o fio ao pé da cama da sua mais pequena. Estava calejada na arte de fazer muito com muito pouco, mas o que conseguia já não chegava, e aquela criança era tão franzina que ela sabia que iria morrer quando viesse a próxima sova. Mais valia ser levada.
E como sei eu de tudo isto? Pois, assim que alguém se decide a invocar-me, abre-se sem reservas ao meu conhecimento. E é por isso que sei que ela pede que eu leve a pequena, porque o gemido que lhe ouve todo o dia não é de birra, mas de fome, e ela tem outras sete crianças a gemer, além de um bardamerda que lhe assenta a mão que devia usar para trabalhar.
No desespero, agarra-se à lenda do homem do saco que leva os meninos que se portam mal e acaba com os problemas numa casa. Não está enganada quanto ao resultado, só quanto ao método: nunca são as crianças o problema.
Aprendi com que me entreter (se tenho uma lenda, imaginem a minha idade) e, como ela, sei fazer muito com muito pouco. O álcool que o homem emborcava esticou-lhe a pele, permitindo uns centímetros de margem no couro que tenho disponível. Com umas mãozinhas maiores e outras mais pequenas, consigo cerzir oito pares de luvas. E o gajo não cortava o cabelo, pelo que até dá para acrescentar uma fileira de penugem em cada par, bem como um porta-moedas com o tecido curtido que se consegue aproveitar das bolas.
Apanho uns galhos secos pelo caminho, que arranjo num molho ordenado ao lado da lareira. Deixo o embrulho com as luvas por cima e, ao lado, o porta-moedas com o fio vermelho, para ela o poder reutilizar.
SOBRE A AUTORA
Patrícia Lameida cresceu entre livros, aventuras e novos mundos. Escreveu, desde cedo, poemas e pequenas histórias que esqueceu com o tempo. A vida divergiu do mundo das letras durante a sua formação e entrada no mercado de trabalho. Não tardou a reencontrar esta paixão, mantendo um blogue de crítica literária durante vários anos e escrevendo pequenos textos, alguns dos quais poderão ser encontrados em antologias como o Almanaque do Dr. Thackery T. Lambshead de Doenças Excêntricas e Desacreditadas e Não Vão os Lobos Voltar e em revistas literárias como a Palavrar.