A Obrigação

de Leonor Hungria

 

Heitor Ravasco embrenhou-se na mal iluminada secção de Direito Financeiro. O cheiro a bolor e a papel velho, mais pungente naquele recanto, atordoou-lhe as narinas. Abeiravam-se horas de intensa procura. 

A urgência do achamento, que o atormentava há vários meses, adensara-se, pesando-lhe na cabeça, nos membros, nas vísceras. Pegou num volume desactualizado de Modelos de Fiscalização de Sociedades Anónimas e abriu-o ao acaso. 

Há muito tempo, ao escolher a sua área de actuação, não antecipara o momento em que se encontrava agora. Constituíra e levara à falência várias empresas suas, deixando os credores acorrentados a processos jurídicos que se arrastavam, onerosos. Lesara também diversos clientes, privando-os do que acumulara em contas offshore, que não podiam associar ao seu nome. Arruinara-lhes a vida. 

Foi assim que o vínculo contratual que o protegia de todas as vicissitudes financeiras e legais se revelara mais do que conseguia cumprir. Não que o indivíduo com quem firmara tal obrigação não o tivesse advertido. Mas o anunciado arrependimento havia chegado por fim. Era-lhe essencial, presentemente, recuperar o bem transaccionado na assinatura do contrato e proceder à inteiração anímica.

Heitor segurou o livro pela lombada e sacudiu-o. Nada. Nenhum elemento se libertou das páginas. Desalentado, restituiu-o à estante e ao oblívio. 

Correu os dedos pelas lombadas mais ou menos desfeitas dos volumes vizinhos, um deles anunciando-se numa sensação de formigar no corpo. Agarrou-o com expectativa. Direito das Obrigações. As letras douradas destoavam do azul gasto da capa. 

Folheou-o ameaçando a integridade das costuras. Nisto, uma entidade disforme escorreu por entre duas páginas e baqueou no revestimento de pedra. Finalmente! 

À serendipidade, porém, sucedeu-se a angústia. Ali, no chão, estava a sua alma. Morta.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

SOBRE A AUTORA

Leonor Hungria

Leonor Hungria nasceu em Lisboa, no dia 6 de novembro de 1977, arruinando assim os planos da sua mãe de ver o último episódio da telenovela Gabriela. Foi fonte de mais alguns aborrecimentos durante a infância: era habitual os pais encontrarem-na a desenhar nas paredes da casa, especialmente debaixo do lavatório, onde os gatafunhos passariam despercebidos. Ou assim ela o pensava.
A sua paixão pelo desenho, pelos livros e pela escrita cresceu na adolescência, o que fez dela uma «croma» sem remédio.

O seu corpus de trabalho abrange os géneros neovitoriano, gótico e horror, sempre com algum humor. Negro, claro.