A Santa
De Ana do Carmo Martins
A santa desta igreja está sepultada sob as lajes do altar. Acima, representada em cera, estava a sua figura, no caixão de vidro onde repousou o seu corpo, até a decomposição lhe desfigurar a santidade.
Este miúdo da catequese tinha um fascínio pela santa. Passava tempos infinitos a apreciar a figura de cera, e posso quase jurar que, em certa ocasião, cheguei a ouvi-lo falar com ela. Foi há muito tempo, e éramos crianças, ninguém dava grande importância. Os adultos, além disso, achavam-lhe piada. Diziam que era muito devoto, o miudito.
Foi num dia de catequese, que por ressalva foi à noite. O Senhor Padre saiu a meio, muito apressado. Alguém tinha morrido ou estava para morrer, precisava da extrema-unção. Ficámos todos sentados no lugar dos fiéis, muito caladinhos de início, a pedido do Senhor Padre, mas rapidamente tudo destabilizou quando a dita criatura de Deus, o miúdo do amor à santa, se levantou muito direito e subiu ao altar. Os mais velhos começaram com piadolas: «ó Carlos, deixa a santa, nem morta tá descansada», «vais tocar-lhe nas maminhas?», «atão, como é santa, não é pecado»… O Carlos nem os ouvia, junto ao caixão a observar a santa. Não sei se o olhar dele era de reverência ou de fome, de quem lhe tinha respeito ou de quem lhe saltaria para cima dada a oportunidade.
O Carlos era um puto normal quando estava fora da igreja. Uma família honesta. Uma infância calma. Brincava e falava como qualquer miúdo, mas, mal entrava na igreja, parecia outro. Naquela altura, estaria a entrar na puberdade, mas o fascínio com a santa já tinha começado há muito tempo. No batizado da irmã, teria ele uns três anos, recusou-se a descer do altar. O Senhor Padre acabou por dar a missa com o Carlos por trás, que nem uma estátua religiosa. Foi essa a primeira ocorrência e houve muitas que se seguiram, mas a daquele dia… a daquele dia seria a última.
O pânico instalou-se quando ele tentou abrir o caixão. Ninguém sabia bem o que fazer. Uns acharam a situação divertida, desejando ver no que aquilo dava. Outros queriam pará-lo, ir avisar o Senhor Padre. No final, ficámos só todos especados a olhar, congelados no tempo e na curiosidade mórbida do episódio que se desenrolava. E o puto, como se estivesse a fazer uma coisa normalíssima, sereno e enfeitiçado, empurrou a tampa do caixão, soltando o cheiro mais fétido que o meu nariz alguma vez cheirou, a cera velha e mofo, exagerado pelo calor daquela noite de verão. Trepou para dentro do caixão e deitou-se por cima da santa. Face com face.
Todos os outros — que, como eu, estavam no lugar dos fiéis — dizem que não viram nada, mas eu posso jurar que a santa abriu os olhos. Olhou-o em choque, numa expressão injuriada, de quem acordou de um pesadelo para outro. E ecoou um grito pela igreja, talvez de uma das miúdas, talvez da santa, quando o Carlos pousou os lábios sobre os da figura.
O rapaz, no entanto, não conseguiu quebrar aquele beijo. Não por amor, mas porque estava preso. De lábios colados aos da santa, a aflição atingiu-o. Por mais que empurrasse, arranhasse, esperneasse não havia meio de descolar. Gritou por ajuda, em sons guturais, até que os mais velhos o foram acudir. Mas nenhuma força conseguia separar aquela união de cera e pele. De sacro com mundano. De santidade e pecado.
O miúdo não sobreviveu. A única opção foi derreter a santa, mas, entre o tempo de chegar ajuda e conseguirem retirá-lo, o rapaz sufocou. As autoridades explicaram que a causa tinha sido o calor do verão, aliado à temperatura corporal do miúdo, mas alguns fiéis viram naquilo um castigo divino. Enfim, eram outros tempos…
O Senhor Padre recusou-se a fazer o funeral, e a família nunca mais foi olhada de frente por ninguém da aldeia. Acabaram por se mudar para outra terra e deles nunca mais se falou, até porque, entretanto, o Senhor Padre morreu… Já a santa — ou o que da figura restou — foi guardada algures nos arrumos da sacristia, onde, calculo eu, estará até hoje… resguardada de outros potenciais amantes.
SOBRE A AUTORA
Ana do Carmo Martins
Ana do Carmo Martins nasceu algarvia e, por alguma razão, fascinada com cenas bizarras.
Estudou Línguas e Literaturas na Universidade do Algarve, onde se apaixonou pela literatura gótica do século XIX, e Som e Imagem na ESAD.CR, onde percebeu que o que realmente gostava era de contar histórias sobre os recantos escuros lá da sua terrinha.
Estagiou com a empresa Stunning Fields, como escritora para a novela Senhora do Mar, e é tradutora técnica e literária.
Gosta de gatos, azeitonas e longos passeios em cemitérios.