A Segunda Cama
De Lucas Martins Crispim
A casa da minha tia tinha um quarto com duas camas. Sempre me perguntei porquê. Ela sempre viveu sozinha, sem filhos, sem marido ou amante, nem colegas de quarto. A minha tia foi uma mulher de carreira e de pouco tempo em casa até ao fim da vida. Sempre sozinha. Sempre ocupada. Sempre longe. Porquê duas camas, então?
Em 97, mudei-me para lá. A minha tia já não estava entre nós. A casa, agora vazia, era pequena e conveniente. Perfeita para começar a minha vida, longe dos meus pais, perto da cidade. Finalmente o meu espaço.
A primeira noite não foi fácil. Na altura, dizia a mim mesmo que eram os nervos, as saudades, uma questão de hábito. Mas, na realidade, algo dentro de mim sabia que era estranho dormir numa cama enquanto a outra ficava vazia. Limpa. E calada.
Enquanto humanos, estamos no topo da cadeia alimentar porque evoluímos, ao longo de milhares de anos, para ver as ligações lógicas que os outros animais não veem. Se um membro da tribo morre depois de comer um cogumelo, é porque o cogumelo é venenoso. Se há muito silêncio, é porque qualquer coisa está a tentar passar despercebida. Se há duas camas, é porque há duas pessoas na casa.
No início, esta ligação não é consciente. É uma ideia, escondida sob a forma de um desconforto. De começar a demorar mais uns minutos a adormecer. De fechar os olhos com mais força. Estas sensações, no entanto, vão aumentando, até que um dia, de luz desligada e virado para a janela, todos os medos se cristalizam num pensamento: e se, quando eu me virar, estiver algo na outra cama? E se não estiver a dormir?
Há um momento de paralisia. Um momento onde o teu próprio quarto se torna alienígena. Um momento onde não queres olhar e ver, porque não tens a certeza absoluta de que vais ver o teu quarto vazio. O próximo momento demora um pouco mais. Demora um pouco demais. E é normal. No final de contas, está no escuro, nas tuas costas — onde não o consegues ver. E tu foste programado, por centenas de anos de evolução, a ter medo do que não consegues ver, porque o que não consegues ver quer fazer-te mal.
Começas a sentir-te observado. Mas esta sensação não fica só na segunda cama. Como uma minhoca, esta ideia escava, infiltra, aninha-se no centro do teu cérebro. De repente, a casa que antes estava vazia já não o parece tanto. O levantar a meio da noite para ir à casa de banho é acompanhado por medo. Medo de algo estar à tua espera quando viras o canto, medo de algo estar à tua espera quando abres a porta da casa de banho, medo de que algo olhe para ti do outro lado do espelho.
Os minutos extra para adormecer tornam-se em horas, as insónias em diretas, e o sono num pesadelo. Nunca intenso, nunca real, nunca realmente assustador. É sempre potencial, fruto da vozinha que não consegues calar e que te diz: «e se for esta noite, e se for agora?».
Por fim, o cansaço acumula-se, e acumula-se, e acumula-se até que todos os momentos da tua vida são consumidos por um único pensamento: estou tão cansado. E eu fiquei mesmo cansado. Cansado não só de não dormir e da segunda cama, mas das pessoas, do meu trabalho, dos primos e dos amigos. E dei por mim igual à minha tia. Sozinho num estúpido quarto com duas camas.
Cheguei então à conclusão, como aposto que tu chegarias, de que não conseguia aguentar mais. Não conseguia! Não conseguia mais estar cansado, não conseguia mais não dormir, não conseguia mais com a estúpida da segunda cama. Empurrei-a para o pátio, despejei-lhe gasóleo em cima e deixei-a queimar. Fiquei a vê-la arder até ter a certeza de que não sobrava nada. Nada da cama, nada dos espíritos e nada das tretas que a minha cabeça tinha inventado.
Nessa noite, fui dormir num quarto com uma só cama. E sabes que mais? Não consegui dormir. Estou louco, só pode. Mas nunca me senti tão sozinho.
SOBRE O AUTOR
Lucas Martins Crispim
Lucas Martins Crispim é um ser humano que estuda psicopatologia infantil, entre outras coisas. Nasceu em Portugal, num ano qualquer, filho de dois pais perfeitamente normais. Aprendeu a escrever na escola primária, como toda a gente, e desde então nunca mais parou, apesar dos pedidos em contrário. Gosta de escrever sobre coisas que interessam a uns e aborrecem outros, o que considera um bom equilíbrio.