A Voz
de Telma Cebola
Mais um dia a ouvir a Voz. Aquela maldita Voz! O tom nasalado irritante, a arrogância que se adivinha no timbre, a prepotência na forma de falar… Ai, se eu pudesse! Costumo imaginar que o faço muitas vezes, sabem? E, ultimamente, cada vez mais.
Não foi sempre assim. Ao princípio, a Voz até parecia simpática, o tom nasal não era (tão) irritante e até que o tolerava. Mas depois, com o passar dos dias, semanas, meses… Jesus! Que nervos me dava aquele tom! E a Voz, vinda das profundidades do nariz, como se estivesse sempre entupida. Assoa a porcaria do nariz!
Mais tarde, veio o volume. Como se estivesse sempre a gritar: «Olhem para mim! Eu sou importante! Têm de me dar a vossa atenção!» E eu comecei a perder a cabeça. Ainda tentei distrair-me, mas a Voz não parava, cada vez mais alta e arrogante. Depois, olhei para a minha mesa e vi o que tinha disponível. E os sonhos (acordados) começaram a acontecer.
Primeiro, para acabar com o tom, enfiava-lhe uma tesoura nariz acima. Resolvia-se logo um problema! A seguir, claro, era a língua. Nessa, ia demorar algum tempo. Ia dar-me prazer cortá-la aos pedaços, um a um, bem pequeninos. E depois, para finalizar, a cara, com uma expressão entre o espanto e a dor extrema, enquanto via o sangue a escorrer do sítio onde costumava estar o nariz, e a boca a abrir e a fechar, sem conseguir produzir som…
Comecei a sorrir. A Voz tinha deixado, finalmente, de falar. Onde antes havia sons de sofrimento, havia agora só silêncio. Que sossego! Que maravilha!
Para já, deixo esta vontade pertencer ao mundo dos sonhos. Deixo-a marinar. Agarro-me a esta ideia e ganho forças para continuar aqui. Todos os dias, oito horas, de segunda a sexta-feira. São 2400 minutos e 144 000 segundos (sim, eu contei).
Mas quem sabe se, um dia, não nos vejamos a sós no escritório? Só nós e uma tesoura. E a Voz comece a falar.
SOBRE A AUTORA
Telma Cebola
Telma Cebola nasceu em Cascais no ano de 1985. O terror esteve sempre presente na sua vida, especialmente na vertente literária (tem toda a coleção Arrepios) e cinematográfica (passou a adolescência a ver filmes de terror de qualidade duvidosa). Escreve para libertar os seus demónios e vê na escrita uma espécie de terapia, em que a mente a obriga a passar para o papel os pensamentos menos sãos que tem. Talvez um dia esses pensamentos se transformem num livro.