A Voz de Deus
De Carlos Aleluia
Não dei ouvidos.
Não dei ouvidos à minha irmã mais velha quando me aconselhou a não ir para o seminário. Quando me prometeu que cuidaria de mim o resto da vida, conhecendo-me de ginjeira e sabendo que eu jamais aceitaria casar e assentar com uma mulher que nunca poderia amar — por razões óbvias. Homens como eu sempre viveram num universo paralelo aos demais, quer fosse infiltrados na sociedade atrás de uma máscara por debaixo da qual só nós nos identificamos uns aos outros, quer fosse a viver totalmente à parte da mesma, sob o ácido escrutínio de olhares alheios. Já os meus pais, consciente ou inconscientemente cegos ao futuro que me aguardava, sempre me incentivaram a seguir pelo caminho da Igreja. Afinal de contas, dá sempre prestígio à família que pelo menos um pobre coitado por geração seja padre.
Não dei ouvidos aos meus companheiros no mosteiro em Lagos, quando me advertiram contra partir para o Novo Mundo. Avisaram-me de que não me iria adaptar à vida no meio do nada, onde não teria os mesmos privilégios, liberdades e devoções a que tínhamos direito em Portugal. Sempre me disseram que aqui, se a palavra do Rei é ordem, a palavra de Deus é lei. A verdade é que, passados os meus anos de aprendizagem, já me começava a fartar dos mesmos corredores, das mesmas ruas, das mesmas pessoas. A minha mente rogava pela emancipação a que o meu corpo, manietado, apenas raramente tinha direito. E o bispo era tão passional ao detalhar a sua visão de espalhar a palavra de Cristo aos quatro cantos do mundo que não fui capaz de recusar embarcar no danado navio, em direção ao desconhecido.
Não dei ouvidos à tripulação da nau de São Francisco quando me tentaram dissuadir de seguir o bispo e a sua excursão para o interior da Amazónia — quando ele recrutou, à força, um bando de indígenas, com o intuito de o guiarem ao coração da população nativa. Chamaram-me a atenção para as mutilações anormais de que todos sofriam nas orelhas. Disseram que, se eram todos surdos, teria de haver uma razão macabra. Mas eu, talvez persuadido pelos seus peitorais vigorosos e mulatos, ou talvez movido pela minha curiosidade desapropriada, não pensei duas vezes.
Não dei ouvidos aos mercenários da expedição quando rasgaram os seus contratos e abandonaram a missão, após a epidemia de febres altas e alucinações que assolaram os seus militantes, levando mais de uma dezena a perecer afogados no rio. Nem quando o bispo sucumbiu à mesma doença, tendo-se levantado do leito fatal e entrado na água como quem via finalmente a sua candidatura ser aceite no Reino de Deus. Nem mesmo quando também eu comecei a sofrer da mesma hipertermia, sob o olhar imutável dos nativos, imunes à enfermidade que se espalhava pelo meu corpo.
E ainda bem que não lhes dei ouvidos. Porque agora, finalmente, O oiço. Escuto a Sua voz, mais deslumbrante do que a imensidão do oceano e mais inspiradora do que o brilho dos céus. Qual chamamento de sereia, pede-me para eu entrar no rio. E eu, sem questionar, entrego-me à água.
SOBRE O AUTOR
Carlos Aleluia
Carlos Aleluia nasceu em Lisboa em 1996. Desde os tempos de infância, em que assistia diariamente à Batalha do Abismo do Elmo, que decidiu que imaginar mundos era bem mais divertido do que somente habitá-los. Atualmente, quando não tem a mente a fervilhar de novas histórias, é engenheiro de software. Talvez por isso, hoje em dia, tenha um fraquinho por ficção científica e inteligência artificial, temas que explorou na sua estreia como autor com o conto «Ágape», vencedor do prémio Ataegina 2021. Talvez um dia invente robots suficientemente inteligentes para se dedicar a tempo inteiro à arte de fantasiar.