Acredita em Mim

de Inês Garcia Morais

 

— O Diabo não castiga meninas pequeninas — dizia-me o meu avô, com todo o amor, afagando-me o cabelo e ajeitando o cobertor da minha cama. — Está ocupado com os homens maus do mundo, querida. Não te preocupes.

O sorriso dele assegurava-me, mesmo em criança, de que, nesse caso, o Diabo nunca iria atrás dele. Nunca tive a coragem de lhe dizer, apesar disso, que ele não estava inteiramente certo. 

A minha avó observava à porta, de terço na mão direita, agarrando com a esquerda o crucifixo dourado que trazia ao pescoço. Silenciosa. Preocupada. Temente. Não contrariava o meu avô. 

Mas não me tranquilizava.

Sabia que as tempestades significam mais do que chuva — eram lutas, dizia a minha avó. Lutas entre o céu e os outros.

Mas nunca me tranquilizava. 

De todas as vezes que eu pedira para não dormir sozinha, todas as vezes que acordara a casa inteira com os meus gritos, que rogara para não sentir o que sentia… ela nunca me aliviava o pânico. Nunca me dera um beijo na testa ou um abraço, nunca dissera palavras doces; nunca ralhara sequer.

Não sabia porquê, ao início. Mas hoje sei.

— Devíamos levar a menina a um padre — dissera ela uma vez à minha mãe, das poucas vezes que eu a vira sóbria.

— Que tontice, mãe. Ela precisa é de ir lá para fora brincar e não de ir consigo para a igreja, que deixa logo de ter pesadelos — retorquira, de cigarro na mão. — A mãe que não se atreva.

— Ela sente-o, Maria. Esta criança sente o Mal. Temos de a proteger, senão fica vulnerável a ele.

Lembro-me de me arrepiar. De querer gritar a pedir ajuda. De dizer que a minha avó tinha razão. Mas o desejo de acreditar no ceticismo da minha mãe ganhara a todos os impulsos.

— A mãe que não se atreva a pôr-lhe essas coisas na cabeça — refilou ela, tremendo de irritação e do frio da janela, o fumo do cigarro a sair pela boca. — Quando ela se queixar, finja que não ouve. Ela quer ser igual a si e chamar a atenção. Não lhe ligue nenhuma que há-de passar a maluqueira.

Não. Por favor, não me deixem sozinha. 

Com ele, não.

Talvez, se o ignorasse, também ele se aborreceria.

Vinha a tempestade, dava-se a batalha. E a visita era iminente. A presença que me causava convulsões, que eu sentia nos meus ossos, debaixo dos cobertores. O peso na minha cama. O peso em mim. A respiração a que eu não escapava, mesmo que tapasse os ouvidos. 

Eu tentava rezar. Respiração. Relâmpago.

Tentava repetir, até o cansaço ser desesperante, que era imaginação minha. Respiração. Zumbido. Trovão.

…O meu avô. Ele dizia que eu não tinha importância. Respiração. Relâmpago. Presença.

Tu.

Habituei-me ao peso das tempestades e dos seus significados, os confirmados e os incógnitos.

Tenho trinta anos agora. As luzes estão sempre acesas na minha casa. 

O mundo está repleto de homens maus.

Ainda assim, vejo a tua sombra no corredor. Apesar de não conseguir ver o teu rosto, sei que sorris. Sei que é aqui que queres estar.

E, quando te pergunto porquê, tu respondes simplesmente:

— Porque acreditas em mim.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945


SOBRE A AUTORA

Inês Garcia Morais

Gryffindor nascida a agosto de 1986.

Licenciada em Estudos Anglo-Americanos (2009), com pós-graduações em Tradução e Arte e Educação. Fascinada por Poe e Gaiman; Burton, Spielberg e Aronofsky; cidadã de Gotham, Hogsmeade e Rivendell; fã de Zimmer e música dos anos 90.

Com dez anos de experiência em ensino, trabalha agora em integração e well-being.
Foi escrevendo sobre filmes e séries, e completando diversas formações
em Escrita Criativa.

Hoje, o seu propósito passa por explorar e partilhar a terapia existente nas histórias que amamos.
Acima de tudo, acredita que transformar emoções em vida contada é a mais bela das homenagens.