Algodão-Doce
de Ana Carolina Gomes
Um homem dorme, um homem acorda, um homem levanta-se.
Dorme enquanto sonha que é ainda uma criança a rebentar de alegria, entre o caos festivo de uma feira popular. O movimento circular, ondulante, saltitante das diversões mecânicas. Milhares de luzes em competição para ver qual a mais luminosa. A música, as vozes, os risos, os gritos, o cheiro a pipocas e algodão-doce.
Acordou com sabor a algodão-doce na boca, arrancado ao sono pelo sonho transfigurado na imagem da podridão dos cheiros pestilentos dos cantos escondidos da feira popular. As retretes, as zonas escuras atrás das barracas, os caixotes de lixo atrás das rulotes. O pó, as lágrimas, o vómito, o mijo.
Já acordado, deixou-se ficar na cama de olhos fechados, a guardar o sabor a algodão-doce.
Levantou-se, ainda de olhos fechados, sentiu a nudez húmida da pele, sentiu as mãos pegajosas, o cabelo empastado. Abriu os olhos lentamente. Primeiro, viu sombras. Depois, formas cada vez mais nítidas. O sabor a algodão-doce transformou-se numa inundação quente e metálica da língua, dos dentes, da garganta, do esófago, do estômago.
No tapete cinzento e felpudo do quarto, um aglomerado disforme de carne e tendões destroçados, alguns ossos visíveis. Sangue. Tudo era vermelho. Até o próprio corpo nu do homem. Nada na cor vermelha o chocava. Sabia que o seu ser noturno tinha necessidades, que só existia de dia porque uma parte poderosa e obscura de si se alimentava durante a noite.
Cerrar, desfazer, diluir, desinfetar. Enquanto limpava, encontrou a vareta de algodão-doce que a miúda agarrava quando se perdeu na feira. Encostou-a às narinas e inspirou profundamente, ainda sentia vestígios da nuvem cor-de-rosa. Colocou-a na jarra, em cima da mesa-de-cabeceira.
SOBRE A AUTORA
Ana Carolina Gomes
Ana Carolina Gomes é feita de palavras e política: antropóloga de formação, ativista a tempo inteiro e escritora como condição. Publicou o livro de poesia Tudo e Nada, entre outros textos em revistas e obras coletivas. Frequenta o mestrado em Escrita Criativa da Universidade de Coimbra. É uma das criadoras da revista de ficção especulativa PACTO.