Almeida dos Caixões

De Carlos Filipe Matos

 

O senhor Almeida acredita ser mais famoso do que o presidente da junta, do que o cantor popular, nascido e criado no bairro, agora com carreira internacional, ou até do que o padre «que baptizou e casou todas as gentes que por ali passaram».

«Almeida dos Caixões», como é apelidado, orgulha-se em dizer que manteve um negócio de família de meia década com a esposa Matilde. Era contactado por familiares, nativos de todo o Algarve, «tivessem fugido» para o resto do país ou para o estrangeiro, porque «queriam todos ser enterrados no lugar onde nasceram».

Com setenta e cinco anos, os dois teriam sido pais muito tarde, de duas gémeas de oito anos, Marina e Milene. O senhor Almeida refere ainda que gostavam de passear as meninas, «que fazem as delícias dos reformados, ali do bairro». De olhos verdes, morenas e de cabelos encaracolados, teriam trazido mais vida e alegria ao casal «do que o sol de verão sobre o seu pátio».

 

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O texto acima é um excerto da análise psicológica do suspeito, Roberto de Almeida, e da percepção que tem de si próprio. A verdade concluiu-se ser apenas os cinquenta anos do negócio. 

A apreensão do suspeito resultou de uma queixa de cheiros nauseabundos, provenientes da casa adjacente à funerária. A curiosidade de vizinhos coscuvilheiros transformara-se em genuína preocupação, e a GNR fora finalmente chamada ao local. Quando o resultado da busca foi divulgado, a autarquia viu-se obrigada a fornecer ajuda psicológica aos moradores de todo o bairro e arredores.

Por toda a casa, estavam expostos manequins de aspecto hiper-realista, sentados ou de pé, em diversas representações da vida quotidiana. No pátio, um manequim feminino de vestido azul deitava-se ao longo do banco com a cabeça pousada no colo de Roberto, que descansava as mãos nos seus cabelos. À frente, sentados no chão, outros dois de pequena estatura e de vestidos amarelos «brincavam» ao jogo da sardinha. Nas sete divisões da casa e no pátio: uma mulher e duas crianças, variando apenas a roupa.

Assim, num golpe de sorte, a Polícia Judiciária encerrou o caso dos dezasseis cadáveres desaparecidos — seis mulheres e dez crianças — roubados em cemitérios por toda a região algarvia.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945


SOBRE O AUTOR

Carlos Filipe Matos

Carlos Filipe Rilhó de Sousa Matos nasceu em Faro a 21 de julho de 1981. Depois de Ficheiros Secretos, Twin Peaks, Twilight Zone, Riget e outros, veio o interesse por literatura de terror, com um interesse pouco saudável nos cenários macabros de Clive Barker, Lovecraft, H.R. Giger, Junji Ito e amigos. A forte ligação ao terror literário e cinematográfico do rock e metal juntam os hobbies de escrita, bateria e jogos de computador, claro.