Altar de Vidro

de Miguel Gonçalves

 

 

O quarto estava escuro, excepto pelo brilho fraco de algumas lâmpadas antigas, que lançavam sombras distorcidas nas prateleiras. Frascos de vidro alinhavam-se como soldados silenciosos, cheios até cima de um líquido amarelado que preservava os seus conteúdos. Dentro de cada frasco, um par de olhos imóveis flutuava, suspenso. Tinham tamanhos, cores e formas diferentes, mas todos possuíam algo em comum. A história capturada no último reflexo das suas pupilas.

Samuel, o homem que os guardava, movia-se com a cautela de um devoto numa igreja. Ia acariciando os frascos com as pontas dos dedos, murmurando os nomes escritos em cada um, de cabeça, como uma prece — os nomes das almas que acreditava ter salvo. A ideia tinha-lhe surgido há anos, como uma revelação, e aos poucos tinha-se tornado uma certeza que não podia ignorar. Os olhos eram o portal para a essência mais pura de cada ser.

E se ele pudesse recolher essa essência antes que ela se perdesse? Se pudesse preservar a alma antes que as memórias se dissipassem? Ouvira muita gente repetir a ideia, mas só ele parecia entender a verdade naquelas palavras. Só ele parecia perceber o peso que elas tinham. Acabaram por se tornar o seu mantra. Os olhos são o espelho da alma.

No início, hesitara. O primeiro sacrifício tinha sido um jovem mendigo. Samuel lembrava-se do medo nos olhos do rapaz, do terror que tinha na voz. Prometera-lhe que seria rápido, que era para o bem dele. Quando esse primeiro par de olhos, finalmente, repousara no frasco, Samuel sentira-se em paz. Era um sentimento novo e assoberbante, como se, de facto, estivesse a cumprir um propósito divino.

A colecção cresceu. A cada frasco, uma nova chance de redenção, uma nova prova da sua missão sagrada. Conseguia ver a beleza em cada par — olhos azuis como o oceano, verdes como florestas antigas, castanhos como a terra molhada. Cada cor guardava segredos, traços da alma que acreditava ter protegido do sofrimento eterno.

Ultimamente, porém, algo tinha mudado. Não nas almas que tinha salvo — essas estavam seguras. Tinha sido uma mudança em si mesmo. Começou a notar imperfeições na colecção, pequenos defeitos nos frascos, um brilho turvo no líquido que antes não estivera lá. Questionava o seu método. E se tivesse feito algo errado? E se as almas não estivessem realmente em paz?

A obsessão corroía-lhe os pensamentos. Passava noites sem dormir, de pé diante dos frascos, procurando respostas no silêncio dos olhos mortos. «Talvez não tenha feito o suficiente», murmurava para as prateleiras que o olhavam de volta.

Foi numa dessas noites, quando a lâmpada oscilava e as sombras pareciam mexer-se sozinhas, que teve uma epifania. Era ele que era impuro. Ele, que os havia salvo, nunca havia purificado a sua alma. Talvez a sua própria essência estivesse em risco de desaparecer.

A ideia cresceu como uma erva-daninha, até não deixar espaço para mais nada. Se os olhos realmente guardavam a alma, precisava de salvar a sua, antes que fosse demasiado tarde.

Samuel foi meticuloso. Esterilizou os instrumentos, colocando um frasco vazio na mesa à frente, que encheu com o preparado onde iria preservar a oferenda. Os únicos sons que agora restavam eram os ruídos abafados de sua respiração. O espelho sujo e gasto, pouco mais do que uma placa de metal polido, devolvia-lhe o reflexo distorcido do seu olhar. Era a primeira vez que notava o quão desesperados os seus olhos pareciam, prisioneiros de uma profundidade escura.

A primeira incisão foi rápida, precisa. A dor explodiu-lhe na cabeça como um rasgo de luz, mas Samuel manteve o foco. As mãos tremeram-lhe enquanto retirava o primeiro olho e o colocava no frasco, com um som frio e húmido. Sentiu uma sensação de êxtase percorrê-lo, mas também de alívio. Metade da alma estava segura.

O segundo olho foi mais difícil. As mãos tremiam-lhe mais, e a visão reduzida deixava-o desorientado. O sangue que lhe escorria pelo rosto e que lhe manchava as mãos tornava o procedimento mais complicado. Samuel, no entanto, fiel às suas convicções, conseguiu arrancar o globo ocular e, tacteando, deixá-lo cair no frasco junto ao outro. Uma nova paz percorreu-lhe o corpo enquanto o escuro o envolvia.

Samuel ignorou os rasgos de dor que pareciam trespassar-lhe o cérebro como relâmpagos e levantou-se, com os frascos de vidro alinhados em redor como velas num altar. Tinha perdido a visão, mas mentalmente conseguia ver cada uma das almas que havia salvo, a brilharem como halos. Por instinto, ou guiado por alguma força, colocou o seu frasco num espaço vazio.  A sua alma estava agora entre elas, protegida, flutuando com as outras à volta.

Satisfeito, Samuel sorriu, um sorriso presenciado apenas por uma panóplia de olhos atentos, e pelas almas a quem estes pertenciam.

 

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

SOBRE O AUTOR

Miguel Gonçalves

Miguel Gonçalves nasceu no Porto, Portugal, nos anos 80.
Cresceu com banda desenhada, livros de fantasia e de terror — bem como filmes — e com bandas de rock.
Desde muito novo que escreve, sobretudo para si próprio, e as suas histórias são uma mistura de terror, thriller e serial killers, com algumas delas a aventurarem-se no espectro sobrenatural do terror.
Passa o seu tempo livre a jogar roleplaying games, a ler e a beber café.
É o autor de The Scarecrow Man, que foi publicado na antologia da Dark Pine Publishing e independentemente como minilivro.
Se estiverem no Porto, é provável que o encontrem num Starbucks a ler ou a rabiscar num caderno.