(Âmago)

De Robson Siebel

O espírito vaga, livre.

Deixa-se levar pelo magnetismo a que tresandam alguns recetáculos, mesmo distantes. Viaja. Não tem conhecimento do tempo, apenas do destino. Cruza, rarefeito, a cerca de ferro que protege o relvado; não perturba as folhas secas ao contornar a fonte. Aproxima-se da porta branca, envolta por uma parede branca.

Entra por baixo, pela fresta rente à carpete. Rasteja por corredores centenários, repletos de retratos patrióticos que o olham de cima. Ao encontrar a escada, acelera, sentindo a proximidade, o cheiro que atrai com violência. Esgueira-se entre dois guardas e vê-se diante de uma porta nua, de madeira escura.

Afunila-se pela fechadura como um sopro morno e adentra o quarto; o ar vibra com um ressonar enferrujado. Sobre as canelas inchadas, avança, e sobre o corpo letárgico, e enfim sobre a cabeça que descansa na almofada com fronha de seda. Paira, incógnito, sobre a boca aberta; condensa-se à espera do inspirar.

É puxado para o interior. Escorre entre a língua e o céu da boca, desliza garganta abaixo, traqueia adentro, até se dissipar nos alvéolos. Agora, já não há fronteiras, todo o corpo está ao seu alcance, embora só uma parte importe: a alma, o centro, o âmago. No entanto, já não há lá nada além de um emaranhado negro que não pode ficar mais negro. É inútil ficar.

É expelido numa tosse espumosa, um borrifo de saliva que chove sobre os lençóis de seda. Com o impulso, dispara na direção da fechadura. Alcança o corredor pelo buraco estreito, desce as escadas e ultrapassa um dos guardas a caminho da porta branca; da fenda. Sai para o ar fresco da noite e, sem perturbar o orvalho sobre a relva, ultrapassa a cerca de ferro para voltar à rua.

Não há pressa e não há tempo; apenas fome, e cheiro de fome.

Livre, o espírito vaga.