Amor de Mãe

De Lewis Medeiros Custódio

 

Ter um filho é uma das experiências mais inefáveis da vida. Apenas quem já teve filhos compreende o que é realmente abdicar de si e viver holisticamente para outra pessoa. Uma espécie de escravidão voluntária, uma dedicação a tempo inteiro. É o fim consentido da nossa liberdade.

Agora, fazíamos parte desse grupo que passou os sonhos e ambições para a geração seguinte – éramos pais. 

Cuidadosa como ninguém, a minha mulher tinha-me ditado, com a mais extrema minúcia, tudo o que era preciso para o bebé. E pediu que lhe repetisse. Não podia faltar nada. 

Vesti o casaco de ganga, despedi-me com um beijo e saí de casa. Caminhei exausto e pesado, debaixo da chuva miudinha, até à farmácia. Era tarde, mas não tarde o suficiente para estar fechada. Ainda assim, não fossem os antigos e já cansados postes de luz, a rua estaria escura como breu. 

As poucas pessoas que encontrei cumprimentaram-me todas com um largo sorriso e a inevitável pergunta — como está o bebé? Desde que me tornara pai que tinha ganhado a simpatia de toda a vila. 

Dentro da farmácia, estava apenas o Sr. Coutinho, um farmacêutico que se recusava a admitir que tinha chegado a idade da reforma. O auxiliar de farmácia que o ajudava já tinha ido para casa.

— Boa tarde, Sr. Coutinho — iniciei eu a conversa como exige a cortesia, com voz raquítica. 

— Boa noite! Já é noite. Então, o bebé? — indagou sorrindo.

— Ficou em casa com a mãe.

— Claro! Com este frio de Inverno, é preciso ter cuidado. Já vi que o amigo não dorme bem há algum tempo, não é verdade?

— Sim, não tenho conseguido.

— É normal nesta fase. Está com que idade o bebé? 

— Dois meses.

— Já? Como o tempo passa. Aproveite, que o tempo não volta! Olhe, o meu já é pai, e o meu neto vai agora para a faculdade, já viu? Piscamos os olhos e já eles estão longe!

  Estremeci por um momento, olhando para ele. Enfiei a mão no por demais pequeno bolso das calças que agora me ficavam largas. Com esforço, retirei a lista enrugada que tinha teimado em afundar-se no bolso irritante. Pus os cotovelos no balcão para conseguir aguentar-me.

— Mas olhe que parece um bocado em baixo. Se quiser, tenho aqui suplementos que lhe vão dar força.

— Não, obrigado, é só o que preciso para o bebé.

— Muito bem, e o que é que vai ser hoje? Não me diga que já gastou as fraldas todas que levou ontem! 

Olhei para a lista e desejei ter decorado tudo o que ela me tinha dito. Ou então que tivesse sido ela a escrever. A minha caligrafia estava tão torta que parecia ter sido impingida ao papel. As letras começaram a ganhar vida própria e a desaparecer com o cansaço dos olhos.

— Deixe cá ver — ofereceu-se o farmacêutico. — Ora, comida para o bebé, pó de talco, fraldas, perfume para o bebé, mais comida… Bem, tem aqui uma lista… E ainda ontem, levou. Mas descanse, descanse. Sente-se um bocadinho naquela cadeira enquanto eu vou buscar tudo e ponho num saco. 

Sentei-me na cadeira e, imediatamente, todo o meu corpo relaxou. É uma das coisas que as farmácias modernas nunca conseguem ter — esta atenção pelo cliente… pelo vizinho. Mal tinha eu descansado e já ali estava o Sr. Coutinho com dois sacos cheios. 

Levantei-me e peguei neles. Tirei a carteira do casaco, paguei e despedimo-nos. Mal me lembro de como cheguei até casa. Lembro-me de estar à porta e de olhar para a fechadura até me lembrar onde tinha a chave. 

Entrei em casa e fechei a porta. O cheiro invadiu-me as narinas. Não havia uma única divisão imune ao odor. 

— Trouxeste tudo?  

— Sim, querida, tenho tudo aqui.

Ela sentou-se no sofá com o bebé ao colo, cuidadosamente enrolado na mantinha azul. Aproximei-me dos dois e pus a mão no ombro direito dela, enquanto espreitei o bebé sobre o ombro oposto. 

— Olha como dorme sossegado. Não o acordes — disse ela, enquanto embalava o menino.

Passei a mão pela cabeça dela, fitando o corpo do bebé que parara de respirar há mais de três semanas, por se ter virado de barriga para baixo num piscar de olhos na banheira.

Sorri para ela, escondendo as lágrimas. Ela acariciou o menino, gentilmente.

— Não é lindo o nosso filho? 

— Sim, querida. É lindo. 

 

 


*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945


SOBRE O AUTOR

Lewis Medeiros Custódio

Nascido na paradisíaca ilha de São Miguel, nos Açores, foi aluno do Conservatório de Ponta Delgada, onde aprendeu piano. É licenciado em Línguas Modernas e mestre em Ensino pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, além de ser judoca, guitarrista e fotógrafo. Desde cedo, desenvolveu uma paixão pelo terror e pelo macabro, mergulhando nas obras de Edgar Allan Poe, H. P. Lovecraft e Stephen King. A emoção visceral desse universo tornou-se uma obsessão que contagiou todos os meios que consome — da literatura ao cinema, da música aos jogos.

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