Anjos Esgaravatando por Alfinetes
De David Soares
Os pés, nus, absorvendo a baixa temperatura dos azulejos — espécie de areia molhada resistente à gravidade: sem sulcos, apenas fantasmas de pegadas, efemeramente aureoladas em cerâmica. Parcialmente encoberta pela penumbra, a banheira perorava uma quase inaudível ideologia de oxidação e desespero; uma nocturnal prece que suplicava ao suicídio. Entorpecido e deprimido, o homem iria tentá-lo pela segunda vez.
Reflectida pelos espelhos, a débil luz da vela iluminava a casa de banho como se cavasse pesadamente a escuridão à roda do pavio; em cromatismo aneurismal, pulsante, da lividez à equimose. Reflectida pelo instrumento mortal daquela noite, uma centelha minúscula suspendeu-se por um instante num dos espelhos, antes de o homem ser interrompido por um ruído semelhante ao da noite anterior: o mesmo tipo de resfolhesim; como um alvoroço de anjos esgaravatando por alfinetes.
Caminhando lentamente na direcção do ruído coribântico, o homem parou à entrada do quarto, desorientado e sustendo a respiração: no escuro, o arranhar frenético era acessível ao tacto, um alfabeto verrucífero.
Entrou.
O ruído parou.
Subitamente, sentiu-se como se o aposento diminuísse. Sem electricidade, a casa estava paralisada no estado onirodínico das florestas e das cavernas, tendente ao pânico e à mitologia. Na escuridão, tudo é epicentral: sensações teóricas materializam-se — sangue e consciência transubstanciam-se, membranais, num mesmo soro, como vinho e hóstia na eucaristia.
Transido, voltou à casa de banho para buscar a vela; esperou uns instantes, antes de entrar novamente no quarto.
Silêncio.
*
De manhã, nevoeiro vindo do mar: enormes novelos, carregados de humidade, anestesiando a vila piscatória num éter de vazante e petricor. No interior da casa, sem luz e sem água, o homem enregelava. Andando de um lado para o outro, de mãos nos bolsos e queixo encostado ao peito, aproximou-se da porta que dava acesso ao velho jardim: cheirava-lhe a maresia, mas também a madeira morta. Entrou na sala de estar e deteve-se a contemplar o antigo piano, deteriorado e sem teclas: esventrado, conciso, como a casca de um insecto. Sentiu repulsa pelo artefacto ridículo, e esse sentimento provocou-lhe uma sensação de angústia. Nas paredes, os vários espelhos, salpicados de negrume, já não ampliavam as dimensões da sala, intersectando volumetria e profundidade, como em outros tempos, mas baixavam-lhe ainda mais a temperatura, servindo de atrelagem ao frio e à luz miserável da manhã. Nauseado pela acédia, de corpo constrito pelo frio, o homem entrou no quarto e sentou-se na cama.
Na mesa-de-cabeceira, encontrava-se o coto da vela, ainda odorifumante. Abrindo a gaveta, o homem retirou o recorte que ali guardara há dois dias: desdobrou-o e surgiu-lhe o rosto de Cristo.
Impressa em papel finíssimo, de má qualidade, a imagem parecia tão efémera quanto uma bola de sabão: taumatrópio de Messias e anúncios de emprego. O homem virou o papel e tentou lembrar-se qual anúncio o fizera recortar a folha de jornal, mas desde a calamidade tudo perdera importância e, por conseguinte, nitidez: as recordações tinham-se tornado facilmente dissemináveis — imagens e palavras do passado eram-lhe fenómenos temperaturais, volúveis como o calor emitido por um radiador. A depressão subtrai o poder de retrospectiva.
Outrora afiada como uma lâmina, a junção da parede da janela com a da porta decaía em óstracos de reboco — narrativos sob a brancura fantasmagórica da manhã; uma eloquência frequente em catacumbas. Essa linguagem pronunciou, lentamente, uma palavra em signos de gesso e bolor: lanterna.
O homem lembrou-se de que tinha uma lanterna no carro.
Se fosse buscá-la, talvez pudesse descobrir a origem do ruído das noites anteriores.
E, se a descobrisse, talvez pudesse terminar a sua tarefa.
Nas ruas impregnadas de nevoeiro, as casas de madeira enegrecida pareciam copos de cerveja acabada de tirar: metade pretas, metade brancas, recendentes a malte de maré baixa. Quase ninguém ali vivia — sussurros distantes de pneus de camiões a passarem na auto-estrada substituíam antigas lengalengas mussitadas às janelas. Sem pessoas, o frio acumulava-se na vila como pó dentro de um jazigo.
De dia, era possível pôr de lado os pensamentos suicidas; era possível olhar para a banheira de ferro sem ver um sedutor caixão cru. O homem queria morrer naquela casa de banho desprezível, que conhecia dos tempos de infância: lembrou-se de ali tomar banho com a mãe e sentiu-se como se se observasse fora do corpo. A nudez de uma mãe é um fóssil pré-lapsário, anterior à astralidade de vergonhosas folhas de figueira e às torturas do trabalho árduo. Vénus cujas únicas rugas estão nas pontas dos dedos.
Imerso no nevoeiro, o homem quase adivinhava por olfacto o trajecto até ao carro. Um cheiro antigo, imóvel como um velho cartaz, fê-lo virar a cabeça: costumava brincar ali — fora tudo em vão? A sua vida, fogo expungido — coração amarrotado em cinzas, dispersas na sementeira de um tempo mais simples? Tremendo de frio, bateu com um joelho no carro, e o veículo amparou-lhe a queda — cavaleiro andante com armadura de aço e fibra de carbono. O homem abriu o porta-bagagens e mergulhou, pesadamente, à procura da lanterna: estava aterrado pela ideia de que ela não estivesse ali — nada era mais importante do que encontrá-la e garantir que, à noite, não seria interrompido. A lanterna seria o escalpelo que extirparia o ruído intruso da sua irreversível tanatocirurgia — mas onde é que ela estava? Chocalhar o conteúdo do porta-bagagens nauseou-o — como se ele fosse a hérnia daquela desultória câmara gástrica.
Foi o polegar que tacteou o vidro — um estático ciclope.
A lanterna.
Agarrou-a.
Bateu com a porta e afastou-se, apressado e atrapalhado, como a manivela de uma sanfona. A sua energia maníaca simulava electricidade: um novo Midas, que curto-circuitava com o toque.
Entrou em casa e inspirou fundo: o ar frio solidificou nos pulmões — dispneia magnética. Exalou e viu nos espelhos o vapor atropelar-se de encontro aos lábios e verter-se como merino. Estava exausto. Cambaleando, entrou no quarto para se deitar.
Susteve a respiração.
Olhou para a cama.
O que é que se mexia em cima da cama?
Sentiu um alarme incorruptível soar-lhe, não nos ouvidos, mas nos olhos: estava um animal em cima da cama.
Um rato.
Pequeno e pálido como uma gota de mel.
Estava a roer o recorte com a imagem de Cristo, que ficara em cima da cama.
Esmorecido, o homem perdeu noção do tempo. Fixando novamente a atenção no animal, percebeu que este não dera pela sua presença: absorto, carcomia o papel, arranhando-o com mãos escanifradas. O ruído das outras noites fora produzido por esse orbicular xilóvoro, esfolando e roendo incessantemente a gaveta, atraído pelo cheiro a jornal: bouquet humífero de resíduos vegetais processados e pigmentos químicos — pão. Hóstia.
De olhos mosqueados pelo medo, o homem ergueu o braço, decidido a matar o rato com a lanterna: imaginou-o, desfigurado pelo golpe, amálgama de pele e fluido, membros meneando em roda-viva sobre si mesmos.
Mas o rato continuava a roer, enlevado.
Tão pequeno, que o sopro de uma oração o faria rolar para longe. Demasiado pequeno para conseguir ver o homem — para compreender a sua forma. Tal como se é incapaz de ver Deus — porque se é demasiado pequeno para compreender a Sua forma, enquanto Ele nos observa. Tal como o homem, de clava na mão, observava o rato.
Subitamente, ele parou de roer e sorveu pelas narinas uma golfada do cheiro do homem: velocíssimo, planou sobre a cama e entaliscou-se numa fissura entre a parede da porta e a da janela.
Esvaneceu.
Atónito, o homem baixou lentamente o braço. Aproximou-se da cama e inclinou-se, cauteloso, para ver o recorte roído. A presença do rato permanecia-lhe em forma de reflexão tardia na retina; um gás de incidência variável, incompassivo e desfocado como ectoplasma.
O homem atirou a lanterna para cima da cama. Caiu como um obelisco derribado — anelante e obsoleta.
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945
SOBRE O AUTOR
David Soares
David Soares (Lisboa, 1976). Escritor, historiador. Autor de quatro romances, quatro livros de contos, dez livros de banda desenhada, dois livros de ensaios e um livro para crianças, nos quais o horror, o fantástico e o histórico se entrecruzam. A par da escrita de novas ficções e diversos artigos, está a escrever a sua tese de Doutoramento sobre deformidades físicas e morais na Europa da Época Moderna (sobre bobos da corte, anões de corte e hereges, entre outros atores sociais, marginais e liminais).