Anomalia

De Bruno Martins Soares

 

A escuridão engoliu-a. Suspirou. Estava a acontecer cada vez com mais frequência. Parou imediatamente o que estava a fazer, ali, em pé, com o tabuleiro inútil nas mãos. E a voz no altifalante soou. 

Anomalia! Anomalia! Por favor, aguardem.

Tomoe aguardou. Que outra coisa poderia fazer? Sempre tinha vivido dentro daquele aparelho computorizado, como milhões de outros. Tanto quanto sabia, estavam há séculos perdidos no espaço. Bem… Perdidos, não. Iam numa certa direcção. Tinham um objectivo. Que nem ela nem a maioria da população soubessem qual era não era relevante. Era só a natureza das coisas. Mas as anomalias estavam certamente a ocorrer com mais frequência.

Ainda no outro dia, tinha comentado com Hiroshi. Tinha ele reparado que, de um momento para o outro, o bolo de chocolate se tinha tornado repugnante? Ela tinha a memória de que, em tempos, tinha sido uma coisa boa. Deliciosa, até. Mas Hiroshi não se lembrava. Para ele, bolo de chocolate era algo de horripilante. Ela, no entanto, tinha essa memória. Parecia que certo dia, de um momento para outro, toda a gente passara a sentir nojo por bolo de chocolate. Mas, se era assim tão nojento, porque é que ainda o faziam, ao longo deste tempo todo? Porque é que não tinha desaparecido do mapa mental das pessoas? Não era algo assim tão nutritivo, pois não? Ela não sabia.

Anomalia! A normalidade será reposta em breve. Por favor, aguardem.

Tomoe suspirou. E porque é que todos, de repente, se lembraram de vestir azul? Não por completo, mas de uma forma muito mais frequente. Tomoe tinha a ideia de que as pessoas, antes, se vestiam de muitas cores. Até os uniformes eram variados. Hoje, porém, ela própria tinha muito mais vontade de vestir as suas roupas azuis do que quaisquer outras.

Porque é que isto acontecia? Seriam anomalias? Mas anomalias em quê? Nas pessoas?

Outra coisa que ela achava estranha era que Akihiro tivesse desaparecido. E não era só ela que achava estranho. Muita gente achara o mesmo. Um dia, ele estava com eles a sorrir, a brincar, com o seu humor torcido, sempre a olhar para Naomi quando achava que ninguém ia reparar (mas só a Naomi é que não reparava, claro), e, de súbito, desapareceu. Deixou de aparecer. Toda a gente achara estranho, mas ninguém tinha feito nada. O que é que se podia fazer, na verdade? Todos tinham um papel, uma posição, um trabalho. Não podiam simplesmente ir à procura de Akihiro. Naomi nunca mais fora a mesma…

Anomalia! A normalidade será reposta em breve. Por favor, aguardem.

Numa missão como a deles, nesta imensa esfera mecânica e rotativa no meio do espaço, com tantas pessoas dependentes umas das outras, não havia lugar a coisas estranhas, a olhar para o lado, a pensar em nada. Não podia ser. Era preciso continuar, comer bolo de chocolate se tivesse de ser, mas continuar sem reclamar. A vida de todos dependia disso.

Tomoe suspirou de novo. O tabuleiro começava a pesar-lhe. Mas o que é que ela podia fazer? Virar-se para o colocar em cima do balcão? E se falhasse? Subitamente, ouviu algo no escuro. Apurou o ouvido e perguntou para o nada: 

— Está aí alguém?

Estava sozinha, claro. Não havia ninguém na sala com ela. Ninguém se mexeria no escuro, não é? No meio de uma anomalia. Seria imprudente e estúpido. Ela só tinha de se acalmar e pronto. Não ser estúpida.

E então, ouviu outra coisa. Perto. Muito perto. Chack-chack! Como se uma enorme tesoura abrisse e fechasse. Uma tesoura! No escuro! O susto foi tão grande que ela paralisou, sem sequer conseguir gritar.

E então, soou uma voz estranha. Muito perto.

— Mamã.

E depois, a dor lancinante da perna a ser decepada abaixo do joelho.


 

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

SOBRE O AUTOR

Bruno Martins Soares

Escritor, argumentista, dramaturgo, editor e gestor de empresas, Bruno Martins Soares ganhou o Prémio Nacional de Jovens Criadores e venceu o Grande Prémio Adamastor do Fantástico 2019 com o seu segundo romance, A Batalha da Escuridão.  Tem vários romances de ficção especulativa publicados em português e inglês e, no seu currículo, também constam peças encenadas e argumentos para cinema e TV produzidos. Colaborou com Cláudio Jordão na curta-metragem de animação A Espuma e o Leão, que já ganhou mais de 80 prémios em todo o mundo. Vive em Lisboa e tem dois gatos.