Artista

de Liliana Duarte Pereira

 

Ainda consigo ver as minhas mãos pequeninas a segurar com a convicção possível a pega de madeira com o pico afiado na ponta. A folha branca tinha estampado no centro um enorme morango. Tínhamos de o picotar cuidadosamente, sem rasgar o papel. Eu atrasava a função, sempre alerta para as consequências do erro. 

Quando já não era possível adiar mais, picotava devagar, mas os tremores desalinhavam o caminho. Ela vinha de rompante, e ouvia-se o eco dos seus sapatos de salto alto enquanto nos contornava pelas costas. Inclinava-se sobre os nossos ombros até sentirmos a impaciência do seu respirar. Com um rigor despropositado, inspeccionava a nossa habilidade ou a falta dela. Qualquer um de nós podia ser o visado. Fechávamos os olhos como quem se prepara para ser atingido. Ou apenas para não ver. 

Quando me calhava a mim, sentia o esticão e um forte ardor. Os meus cabelos encaracolados, até ao fundo das costas, serviam de corda para me arrastar da cadeira. 

Aterrada no chão, permanecia ali até me ser relembrado que tinha nascido sem talento, pelo que a possibilidade de vingar era nula. Só depois deste lembrete é que me era dada permissão para levantar e sentar-me. Sem choro. Sem queixumes. Sem beiço. A ordem era para agir como se aquilo nunca tivesse acontecido. 

A insolência dos adultos é uma máquina engenhosa na criação de traumas perpétuos. Mandam-nos fechar a boca como se só ela fosse capaz de fazer a denúncia. As minhas mãos contaram a história quando agarraram numa tesoura e escortinharam o meu cabelo. Um grito expressivo que, apesar de incompreendido, alarmou. Mas não há repercussões que tapem as fissuras. 

No meu caso, o caos levou-me à arte. Sobre a mesa, corpos pedem para ser picotados. Crio como me ensinaram.


SOBRE A AUTORA

Liliana Duarte Pereira

Liliana Duarte Pereira, nascida a 30 de junho de 1986, é licenciada em Política Social através do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Sempre quis preparar os mortos para os seus funerais, mas não vingou. Tem fobia a pessoas falecidas e a portas entreabertas. Gosta de animais, de fazer doces, de rir de coisas mórbidas e de escrever.

Integrou as antologias Sangue Novo (2021), Rua Bruxedo (2022) e Sangue (2022).

Venceu o Prémio Adamastor de Ficção Fantástica em Conto (2022) com «O Manicómio das Mães», da antologia Sangue Novo.