Auto de Fé

De Inês Videira

 

O grande crucifixo de prata julgava-o antes que a sua própria espécie o fizesse. A figura lá pregada, com os seus membros delgados e formas voluptuosas, com os cabelos longos cobrindo os seios, fitava-o como se lhe perguntasse num tom maternal: porque não me ouviste?

E se aquela que morreu na cruz tivesse sido um homem?

Gregório não estaria naquela situação.

Ping. Ping. Ping.

Aquelas gotas atormentavam-no mais do que as amarras em que se via.

Numa sala de espelhos — para refletir os seus pecados —, as cordas roíam-lhe a pele, e as madres, de batinas brancas, vinham rodeá-lo, para que confessasse as suas faltas.

Naquele dia, uma prelada vinha a acompanhá-las. Distinguia-se das outras pela faixa verde-musgo, combinando com os botões e um solidéu da mesma cor.

Puxou uma cadeira e sentou-se diante dele.

— Meu filho, não podes continuar assim. Confessa. Sabemos que não és devoto da nossa mãe. Nunca tomaste elixires para a cura do teu corpo. Nunca te deitaste com outro homem. Estudas o passado, que apenas à nossa mãe pertence por estar fora do nosso controlo. Confessa.

— Não. Sou devoto.

Suspirando, a prelada pegou numa pequena caixa de madeira, com o tampo decorado em pedaços de madrepérola. Abriu-a, revelando um baralho de cartas. Passando-as nas mãos, batucava com as longas unhas ora numa, ora noutra, até acabar por escolher uma. Apresentou-a a Gregório.

— Se conheces os mistérios, diz-me: o que significa esta carta?

O homem conhecia os arcanos maiores, ensinado pela sua mãe, mas aquela era uma das outras. Representava uma figura num meio inóspito, vendada, amarrada, com várias espadas atrás de si. Podia contar: uma, duas…

— Oito de espadas.

— Perguntei-te o que é que significa, herege.

Isso Gregório já não sabia. O tarot é a viagem d’O Louco, que começa com um salto de fé e termina conquistando O Mundo. Vinte e uma cartas, isso era a escritura básica. Mas todas as outras cinquenta e poucas? Era impossível saber tudo. Além disso, da sua perspetiva, a carta estava invertida. E as cartas invertidas tinham significados diferentes. 

A ausência de resposta foi o suficiente para que a prelada sorrisse para as madres e se levantasse, como se o seu trabalho ali estivesse feito.

Vendo o seu reflexo nos espelhos, Gregório ainda encontrou forças para falar.

— Esta eu sei… — As mulheres voltaram-se para o homem e para o seu reflexo. — Carta XII, O Dependurado.

Uma das madres voltou atrás e certificou-se de que os pés do prisioneiro estavam bem seguros pela corda que pendia do teto. Com uma pequena navalha de prata, aprofundou os vários cortes no rosto e corpo de Gregório, para que o sangue continuasse a correr até ao chão.

Ping. Ping. Ping.

Sangrado. Até à última gota.


 

SOBRE O AUTOR

Inês Videira

Inês vive rodeada de livros desde que aprendeu a ler. Reza a lenda que, quando acabou o livro de Português do 1.º ano, desatou a chorar, porque não tinha mais livros — algo que a mãe resolveu prontamente, com um bonito volume dos Contos de Grimm. Uma coisa levou à outra, então, aqui estamos.

Experimentou escrever em vários géneros ao longo do tempo, e parece que aterrou no fantástico, ocasionalmente escurecendo-o o suficiente para chegar ao terror.


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