Azeite e Mel

de Maria Varanda

 

Graça sempre fora cuidadosa. Sabia como atrair a boa fortuna e manter o Diabo ao longe. Aprendera com a família e perpetuara os seus costumes — era a função das mulheres Casimiro. Era por isso que, secretamente, longe da vista dos maridos, as mulheres asseguravam que nascesse primeiro uma menina. 

Foi só quando Graça engravidou, alguns meses após o casamento com Jorge, que as avós e as tias começaram a suspeitar da desgraça que aí viria. Graça tinha poucas náuseas, parecia anos mais jovem, e a barriga empinava-se sob os seios. Quando a tia Carlota colocou uma agulha suspensa num fio vermelho sobre a barriga da sobrinha, todas as mulheres olharam ansiosas, mas a agulha não se moveu. Ia ser rapaz.

Forçaram-lhe doces, mas Graça tinha pouco apetite para guloseimas. Queria chouriças, pão com queijo, comia maçãs com sal por cima. Deus impedisse de não comer o que queria — mais valia menino do que nado-morto. 

Graça ia à missa todos os domingos, as tias queriam que o menino nascesse já temente a Nosso Senhor. Mais ninguém se apercebeu, mas, numa eucaristia do último trimestre, quando o padre Gustavo ergueu a hóstia, Graça ouviu um sussurro atrás de si e virou a cabeça ao altar. 

Assim, a 13 de Agosto, numa sexta-feira de lua cheia e às três horas da madrugada, Graça deu à luz Jorginho. A tia Josefina tratou logo de rezar pelo menino e, antes que pudesse mamar, a avó Guilhermina espetou duas dedadas na boca chorosa da peste. Uma de azeite e outra de mel. A tia Júlia sorriu; pelo menos, era bonito.

Foi quando começou a crescer que as coisas azedaram. No primeiro Março do menino, a fitinha de cetim vermelho não o salvou de se escaldar sob o sol. Berrou para lá dos seus pulmões quando as tias o banharam em água de ervas para sarar as bolhas. Continuou bonito. 

Jorginho também chorava sempre que as tias lhe davam salsa crua à boca e esperneou como um pequeno diabo quando lhe deram a comer a crista de um galo. Depois de tudo forçosamente ingerido, Jorginho vomitou atrás da porta da serventia. Foi a primeira bofetada que levou. Bonito, sim, mas teimoso e impaciente. Mais valia nado-morto.

Na quarta primavera de Jorginho, uma vaca pariu dois bezerros. As tias queimaram ramos de alecrim e rosmaninho pela casa, e Jorginho recusou-se a entrar até o cheiro se dissipar. Nem os açoites o demoveram. 

No quinto Inverno, o menino teve a audácia de passar por baixo do escadote enquanto o tio Luís limpava o algeroz. Levou outra bofetada, como tantas que a antecederam e que se seguiriam. Foi obrigado a andar com os polegares escondidos até ver o Pantufa, o cão da quinta. Outra penitência foi rezar um rosário com a avó materna, pedindo perdão ao Senhor. 

A má-sorte atingiu os Casimiro numa noite do sexto verão de Jorginho, quando as mulheres largaram a costura e as saias por remendar, assoladas pelo cantar das corujas. Estavam por todo o lado, pequenas formas escuras nos ramos das árvores, nos montes de feno, no telhado da casa. Uma delas voou sobre as suas cabeças e empoleirou-se na janela do sótão, onde Jorginho tinha o quarto. Passaram a noite a pedir misericórdia ao Senhor, mas, chegada a manhã, o tio Luís não acordou. 

No dia seguinte, Jorginho levou a surra da sua vida por destapar os espelhos que a mãe cobrira. As tias e as avós berraram desalmadamente quando a agência funerária levou o corpo, saindo primeiro a cabeça em vez dos pés. 

O avô António foi o segundo a morrer, na semana seguinte, de uma febre súbita, com os olhos muito abertos. A desgraça, o infortúnio! A família estava condenada! 

Depois do funeral do avô António, Jorginho chorou que estava cansado e que queria ir para casa. A mãe, a chorar baixinho, soltou um bramido e afastou-se com as avós. Não teria ensinado nada ao menino? Todos os familiares dispersaram, uns para o café, outros para o jardim da aldeia, ficando a tia Júlia ao lado dele, em silêncio, agarrando-o pela mão. O rio não ficava longe. Puseram-se a caminho. Se tivesse sido nado-morto, tinha dado menos trabalho.


 

SOBRE A AUTORA

Maria Varanda

Nasceu no ano de 1994, sob uma lua minguante, em Sintra, e cresceu a ouvir histórias da aldeia, sobre o papão e ossos escondidos na cave — ganhou-lhe gosto. Está sempre à procura de inspiração na vida real para mais uma história, mas na falta de ideias basta tirar o tabuleiro de ouija, acender umas velas e esperar. Depois, é só passar a mensagem para o papel. Procura-se quem queira ouvir.

A mensagem parece ter chegado aos ouvidos de alguns, com a atribuição do Prémio Adamastor de Ficção Fantástica ao seu conto, «Anfitrite».