Beleza e Castigo
de Inês Garcia Morais
Eva saíra do ginásio às 23 h. O estômago roncava, mas nada que um copo de água e uma maçã não resolvessem quando chegasse a casa. Se se sentisse prestes a desmaiar, uma fatia de queijo magro ajudaria — e os últimos 5 minutos na passadeira aliviariam o inevitável brotar da culpa que essa fatia pudesse trazer.
Tomou um duche rápido antes de sair, e permitiu olhar-se ao espelho. Faltavam só mais 5 quilos. Só mais 5.
Com esse ímpeto na mente, decidiu fazer os três quilómetros até casa a pé. Ao caminhar, o vento gelado castigava-lhe as mãos, e tentou abraçar-se. Sentia as costelas contra a camisola de malha. Culpou-se. Congratulou-se. Tremia.
Abriu a porta do prédio a custo, lutando contra o peso do ferro. Engoliu o sobressalto ao ver a velha vizinha a regar as plantas mortas à entrada.
Lília vivia no apartamento ao lado desde sempre, ao que parecia. Eva achava que ela se maquilhava de forma desadequada. Como se ainda fosse jovem. O eyeliner desbotava levemente nas rugas tristes, e o blush vincava-lhe os ossos. Os cabelos estavam sempre em formato de caracóis vitorianos. Usava brincos e um colar de pérolas, e os vestidos eram sempre compridos e altamente ornamentados. Parecia ter sido recortada da era de ouro do cinema e colada grosseiramente naquela casa pequenina. Eva sentiu pena dela, por momentos, e preparou-se para entrar.
— Boa noite, minha querida, como é que estás?
Eva pestanejou, como quem reza para ganhar forças. Só podia ser uma fatia de queijo, não duas.
— Lília, boa noite. Assustei-a? Desculpe, tentei fechar a porta devagar, mas escapou-se-me da mão…
— Oh, querida, eu não durmo e raramente me assusto. E essa porta de ferro é muito pesada para as tuas mãozinhas. Já comeste hoje?
— Sim — mentiu. — E desculpe mais uma vez tê-la incomodado.
— Que tolice, anda fazer-me companhia. — Lília aproximou-se. Eva conseguia ver-lhe os resquícios de batom vermelho nos dentes tortos e amarelos, bem como os olhos escuros, demasiado acordados para aquela hora. — Tenho sopa acabada de fazer. É levezinha, vai aconchegar-te.
Eva hesitou, mas um misto de pena e de fraqueza impeliu-a a sorrir e aceitar. Lília parecia tão feliz, tão satisfeita. Há quanto tempo não teria companhia?
Uma sopa tinha demasiada fibra, mas não tinha lactose.
Sacudiu os pensamentos. Assumiu o ela por ela e entrou no apartamento da vizinha, com cheiro a azedo e a couves e outras coisas indiscerníveis. Tentou procurar um espelho, discretamente, para matar o vício. Existiam vários, na realidade, espalhados por toda a casa, mas estavam tapados com panos pretos.
A anfitriã reparara.
— Ai, filha, estão todos cheios de bolor, os malandros. Tenho de os mandar limpar quando vier a reforma.
Lília encaminhou-a pela mão até à sala, até à mesa de jantar. Eva sentou-se na cadeira enquanto Lília desaparecia para a cozinha. Quando voltou, trazia nas mãos um prato de sopa fumegante.
A mente e o estômago de Eva lutavam entre si.
— Quer que os limpe, Lília? Os espelhos? É o mínimo que posso fazer, não me custa…
— De todo, querida, de todo! — Lília sorria à sua frente. — Come. Come enquanto está quentinha.
Encurralada sobre si mesma, Eva levou a colher à boca.
***
Acordou com as dores, agarrada à barriga. Havia jarros com rosas por todo o lado, pétalas podres espalhadas pelo chão e velas perfumadas acesas, todas brancas. Cheirava a decadência, a desespero, a nojo e a fim.
Reparou que havia mais três vultos no quarto consigo, deitados. Dois deles não se mexiam. A boca de Eva abriu-se, mas os gritos não saíam. Só lágrimas.
Como se tivesse esperado por este momento, Lília entrou no quarto. Baixou a cabeça para ver se Eva estava acordada e confirmou-o com satisfação. Olhou para cada uma das figuras — mulheres.
— Comeram todas a sopinha, não foi?
Eva tentou cobrir a boca, mas a mão, tal como a voz, não lhe obedeceu. À frente, uma das mulheres imóveis — certamente morta — tinha a cara coberta com cera branca, até as narinas. A outra, ao lado, tinha os olhos abertos ainda, e lábios fechados com fita adesiva. Espalhados à sua volta estavam restos de cabelo ondulado, deixando a cabeça ferida a descoberto. Só a terceira, moribunda, olhava para Eva. Estava presa com corda, tapada apenas com um lençol. Junto a ela — mas não ao seu alcance — encontrava-se um vestido preto brilhante, meticulosamente dobrado, e uns sapatos de plataforma. A mulher estava azulada, do frio. Mas não tremia.
Todas elas pareciam ter a idade de Eva, talvez mais novas. Sentiu as lágrimas a escorrerem-lhe pela cara. Chorava pelas duas mulheres que morreram e com quem nunca falara. Pela rapariga nua perto de si, que lhe devolvia o choro. Chorava por si; pelas horas no ginásio em vez de ter aceitado o convite da mãe para jantar. Chorava pela mãe.
Lília, entretanto, tornara-se um abutre. Tinha os cabelos desalinhados, os olhos a transbordar de raiva, o batom vermelho espalhado pelo rosto e pela mão, ao limpar o suor.
— Esbanjam a juventude, esbanjam-na. Matam a vossa beleza com químicos. Desperdiçam os vossos amores com traições e poucas vergonhas. Não se importam de perder a vossa inocência num vão de escada, depois da boîte. Despem-se para chamar atenção, em vez de se protegerem.
No seu transe de loucura, estacou. Virou o pescoço para Eva.
— E passam fome. Como é que se atrevem? A arruinar o presente que vos é dado e QUE NUNCA MAIS É DEVOLVIDO!
Parou.
Chorou.
— Eu matava por ter os vossos presentes de novo… Matava…
Suspirou.
— Já não sou bonita. Não sou nem vou voltar a ser.
Ergueu a faca. Apontou-a à cintura minguada de Eva.
— Mas posso castigar-vos.
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945
SOBRE A AUTORA
Inês Garcia Morais
Gryffindor nascida a agosto de 1986.
Licenciada em Estudos Anglo-Americanos (2009), com pós-graduações em Tradução e Arte e Educação. Fascinada por Poe e Gaiman; Burton, Spielberg e Aronofsky; cidadã de Gotham, Hogsmeade e Rivendell; fã de Zimmer e música dos anos 90.
Com dez anos de experiência em ensino, trabalha agora em integração e well-being.
Foi escrevendo sobre filmes e séries, e completando diversas formações
em Escrita Criativa.
Hoje, o seu propósito passa por explorar e partilhar a terapia existente nas histórias que amamos.
Acima de tudo, acredita que transformar emoções em vida contada é a mais bela das homenagens.