Boca Avessa
de Carolina Fidalgo
Ele escrevia como se roubasse jóias. Cada vírgula, um ramo amputado a uma floresta feérica, onde a pedra e o creme bordavam as mãos abertas das árvores. Ele chamava em sussurros bocas avessas e fantasmagóricas para embalarem a noite cava. Silêncio. Silêncio. E, na quietude, fogos-fátuos deslizavam inteiros, inchando como frutos gordos que imploravam para serem tocados. Imploravam que lhes estendessem as mãos e os apertassem, clamavam por rebentação. Mas, assim que o leitor acedia e lhes tentava tocar, eles despedaçavam-se no escuro, recolhendo ao invisível.
Era maravilhoso.
O escritor-ladrão roubava angústias. Fazia-o desde o início. Desfazendo-se em encolheres de ombros e tartamudeares de «desculpa», sapateava sobre ninhos de mágoa alheios. Não precisava de convite. Pedia desculpa e voltava a destilar o sangue das vítimas até lhe sobrar um caldo pesado e escuro que levava à boca da sua audiência. Nós agradecíamos.
É que era maravilhoso. Tudo o que ele dizia era maravilhoso.
E o seu destino era, enfim, o de entrançar o cabelo delas sobre o próprio dossel de mágoa auto-induzida. Nunca se poria inteiro, estava partido por dentro sem remédio. Sofrer convinha-lhe. À noite, passava os dedos por entre o pêlo do seu gato e consolava-se por saber que tudo seguia uma ordem natural. O striptease de um escrúpulo após outro era inevitável; era até uma responsabilidade para qualquer um envolvido na negociação do caos e do real para revelar esse esqueleto branco, perolado — a arte —, descascando-o da carcaça do degradante, do vergonhoso, de toda a excreção humana.
Ele fiava sonhos. Em troca, abraçava o terrível, lançando-se no vazio.
Os sonhos que ele sonhava eram de maravilha. E, portanto, o seu era um vazio forrado a admiração. Admiração acolchoada e materna, o mais próximo que soubera do amor.
Sim, ele gostava que elas se ajoelhassem diante dele e sugassem a sua urina de olhos fechados. Gostava de as tomar de surpresa, quando elas se julgavam a salvo. Haveriam de o chamar «mestre», e ele virá-las-ia de costas. Elas sentiriam fundo o seu sonho níveo de uma floresta gelada. Silêncio. Silêncio.
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945
SOBRE A AUTORA
Carolina Fidalgo
Nasceu em Coimbra em 1992, mas cresceu entre a Gardunha e a Serra da Estrela. Estudou Línguas Modernas na Universidade de Coimbra, tem um mestrado em Literatura e outro em Estudos Editoriais. É professora de Português. Já morou na Escócia e na China. Agora, vive na Suécia.