Bruxedo de Revista
de Olinda Pina Gil
A hora do calor estava no seu ponto máximo. Ana entrou na sua rua, sem sombra, com os olhos feridos do reflexo da luz nas paredes brancas. Não havia sombra, nem gente nem animais. O único movimento era o seu.
Tapava a cabeça com um chapéu e com as pastas que trazia do trabalho. Tinha pressa em chegar a casa para se abrigar do calor, mas não podia andar depressa, correndo o perigo de se encalmar e magoar a sua frágil saúde.
O ranger de uma portada quebrou o silêncio da rua. Ana parou e olhou em volta, não detetando qualquer porta ou janela aberta. Sem ligar, entrou em casa.
Na casa do lado, no seu quarto escuro e quente, Maria espreitava Ana por uma fresta da janela. Tinha ouvido os passos dela. Sentiu uma pequena satisfação ao perceber que o marido não a tinha vindo trazer. Tivera de suportar a viagem de autocarro sob o calor. Riu-se. Afinal, ele também falhava.
Maria tinha a mesma idade de Ana, e sempre vivera na casa ao lado. Foram colegas de escola, até mesmo de carteira. Fizeram a comunhão juntas, tiraram a carta na mesma escola e na mesma altura. Nunca foram grandes amigas, mas a vida impusera-lhes uma cumplicidade de vizinhança, apesar de todas as diferenças.
Maria, deste criança, tinha uma beleza encantadora. Desabrochara cedo, com um busto cheio. Mulher saudável, corria nas más línguas da aldeia devido ao sucesso que tinha com os rapazes. Maria não concordava com os boatos. Se sucesso tivesse, teria já encontrado algum com quem valesse a pena continuar namoro.
Ana, por sua vez, fora sempre de pernas compridas e magras, extremamente delicada. Teve todas as maleitas de criança, um acne terrível na adolescência e um aspeto sempre adoentado, de nariz vermelho e olheiras fundas. Fez-se mulher muito tarde, ocupando o tempo que os rapazes lhe deixavam disponível com o estudo. Fez faculdade e tinha agora um bom emprego na vila. Ao contrário de Maria, só lhe conheceram um namorado — um moço com pouca graça, conhecido pelo seu bom caráter e fortuna, com quem casou. Esse rapaz não era senão o que Maria, nas suas mais secretas fantasias de amor ou de ambição, gostava que a tivesse levado ao altar.
Não obstante a proximidade que as ligava, não eram poucas as vezes que Maria se punha a espreitar a rotina de Ana, pela fresta da janela do seu quarto. Havia um nome a dar a esta patologia, um nome que as velhas enunciavam com desprezo e com temor — a inveja. Diziam que fazia mal, mas Maria via a vida de Ana a seguir bem, apesar da pouca saúde. Parecia que as velhas não tinham razão, e a inveja não lhe pegava.
Achava Maria que a sua vida ia mal. Ou, pelo menos, não ia como era seu desejo. Refugiava-se assim naquela inveja que nutria pela vizinha. Imaginava-lhe horrores a sorrir-lhe com uma falsa simpatia.
O tempo passava, e o sentimento crescia em vez de se atenuar. Ana ocupava já nos seus pensamentos lugar paralelo às fantasias que tinha de possuir o seu marido ou o seu emprego.
Há quem recorra a bruxas, mezinhas e feitiços para fazer mal aos não amados. Mas Maria era tão miserável que nem à bruxa podia ir. Não tinha como lhe pagar. De feitiços, nada sabia; de mezinhas, pouco mais. Dizia as rezas ao contrário, partiu santos ao meio. Nada parecia resultar. Ana definhava, mas resistia, sempre com o marido ao lado.
Dizem que há pessoas bafejadas pela sorte. Ana devia ter nascido com o cu virado para a Lua que a protegia. Outras, como Maria, acordavam todos os dias de cu destapado, para depois se levantarem com o pé esquerdo.
Dizem também que o quebranto é poderoso, mas incontrolável. E quanto pior ela desejava a Ana, melhor a vida dela corria. Cabra cabrez, desfaço-te um olho e parto-te em três. Mas era em sua casa que o sol que não entrava, nos seus tetos que o bolor se espalhava. Enquanto Ana emagrecia e fungava, Maria ganhava peso indesejável. Às vezes, é a bruxa que fica embruxada.
Naquele dia, aconteceu-lhe tudo. Partiu um espelho, passou por baixo de uma escada, avistou um gato preto a bufar. Ou talvez nada disso tenha acontecido, e tenha apenas cismado.
Saiu de casa perto da meia-noite à procura de uma encruzilhada. Levava velas negras, uma mecha de cabelo de Ana, o coração de um galo preto que tinha matado nessa tarde, uma rosa de picos fortes, antes vermelha, sem pétalas. Meia dúzia de lugares-comuns que lera numa revista de telenovelas.
Desconhecia quais eram os seus poderes, ou se os tinha. Na verdade, nunca os viria a conhecer, assim como numa viria a encontrar a encruzilhada. A noite estava escura, de lua nova. Dizia-se que os maus trabalhos eram todos feitos no escuro, mas deveria ter levado uma lanterna. Era moça da aldeia, não era moça dos montes, e custava-lhe seguir a estrada velha até à mata, onde sabia estar uma encruzilhada, dos passeios feitos em criança, das tardes a andar de bicicleta. Distava apenas um ou dois quilómetros da aldeia, mas de noite parecia o dobro.
Os campos estavam vedados, mas menos cuidados do que antigamente — a estrada cheia de buracos, as bermas cheias de ervas. A primeira vez que caiu esfolou um joelho. Da segunda, arranhou-se no arame farpado de uma vedação. À terceira vez, falhou-lhe o chão debaixo dos pés. Caiu em vão, o corpo pesado mergulhou na água fria, que lhe abafou o grito. Tinha-se esquecido de que havia poços destapados pelo campo.
No outro dia, como sempre, Ana foi para o trabalho e voltou ao fim do dia. Foi quando reparou que não tinha tirado nenhum lenço do pacote.
SOBRE A AUTORA
Olinda Pina Gil
Olinda Pina Gil é professora de Português. Estreou-se na escrita no DnJovem, suplemento do Diário de Notícias.
Autora de Contos Breves (2013), Sudoeste (2015) e de Sobreviventes (2016) e dos livros infantis O Príncipe e o Lobo (2022) e A Menina e o Circo (2023).
Além de contos publicados em e-book, tem colaborações em publicações dentro e fora de Portugal, com destaque para a coletânea de autores de língua portuguesa Contágios (2022).
Destacam-se os prémios em conto e poesia: Lisboa à Letra 2004; Prosa e Poesia Cáritas Diocesana de Coimbra, 2023; Concurso de Poesia (internacional), Alcoutim, 2024 (menção honrosa).