Calliphoridae

De Inês Videira

 

Apanhei a mosca.

Jamais imaginei que os meus reflexos fossem assim tão ágeis, mas tenho a certeza: apanhei a mosca e fechei-a numa caixa feita com as minhas mãos. Sinto-lhe as asas a bater, as patinhas pestanejam contra a minha pele.

 Que faço com ela, agora? As minhas mãos não são fechadas o suficiente para que ela sufoque, haverá sempre ar e tempo a passar-me entre os dedos. E, se abrir uma delas, ainda que muito devagar, a mosca escapar-se-á e voltará a zunir aos meus ouvidos.

Podia perguntar-lhe como é ser uma mosca. Ver, com omatídeos e sem ângulos mortos, a vida das pessoas. Viver, em média, vinte e oito dias, menos do que um fevereiro bissexto.

Quando olho para a janela, vejo um conglomerado de outras como ela, maravilhosamente azuis e verdes, gemas vibrantes e ruidosas. Decido devolver a mosca à sua comunidade. 

Questiono-me de onde terão vindo tantas. Depois, lembro-me do balde e da esfregona que trouxe comigo.

Claro. 

Morreu alguém neste quarto.

Peço perdão às moscas por ter de lhes abrir a janela. Sei que não vão durar muito tempo lá fora, mas tenho de deixar o ar e o sol entrarem neste estreito décimo terceiro andar.

Debruço-me sobre a cama, puxo os lençóis debaixo do corpo dela, com cuidado. Tenho a sensação de que, se a chocalhar muito, a minha irmã vai rebentar como um balão de água. 

É assim que vou ficar depois de morrer? O nosso rosto foi igual em vida, será também igual na morte? Olho para o corpo deitado sobre os lençóis que pingam lentamente para o chão e vejo um espelho para o futuro.

O meu rosto, agora liso e rosado — vai ficar assim, cinzento e inchado?

O meu colo, firme e quente — vai ficar assim, empedernido e cravado de vesículas purulentas?

A minha cintura, delgada e esculpida — vai ficar assim, dilatada e coberta de pequenas safiras e esmeraldas aladas? 

Que privilégio raro, este de poder acompanhar o meu fim, antes do fim.

Torço a esfregona dentro do balde. Penso em arranjar uns plásticos, para não estragar o soalho e que, quando a minha hora chegar, talvez prefira ser cremada.



SOBRE O AUTOR

Inês Videira

Inês vive rodeada de livros desde que aprendeu a ler. Reza a lenda que, quando acabou o livro de Português do 1.º ano, desatou a chorar, porque não tinha mais livros — algo que a mãe resolveu prontamente, com um bonito volume dos Contos de Grimm. Uma coisa levou à outra, então, aqui estamos.

Experimentou escrever em vários géneros ao longo do tempo, e parece que aterrou no fantástico, ocasionalmente escurecendo-o o suficiente para chegar ao terror.