Calma
de Marta Fonseca
O calor seco, parado, pesava sobre ela, apertando devagarinho, devagarinho, como uma jiboia paciente. Bebeu o terceiro e último golo de água morna da garrafa que não se preocupara em encher. Os raios do sol das cinco açoitavam-lhe os pés despidos, e as pedrinhas do caminho cravavam-se-lhe nas plantas através das solas demasiado finas das sandálias.
Sentiu uma gota de suor gorda a escorrer-lhe pelo meio do peito. Continuou a andar. O amarelo da paisagem estendia-se até todos os horizontes, pontuado, aqui e ali, pelo verde acinzentado de um ou outro sobreiro.
O guia TransAlentejo tinha razão, este percurso pedestre dava a ideia de se poder caminhar até ao infinito. No papel, até parecera uma coisa boa. Pelo menos, a ela. Já ele não ficara tão convencido.
Fora uma meia hora antes — ou uns quarenta minutos… mais de uma hora não podia ter sido — que o casal avistara a placa branca da localidade de Namorados. Haviam estacionado no larguinho à entrada do sítio: um quadrângulo de alcatrão, ladeado por um café à esquerda e uma casa de banho pública à direita, com um par de habitações em frente. Tudo tinha um aspeto bem cuidado, mas não se via uma alma.
Ele desligara o carro, com um suspiro. Idealizara umas férias de manhãs na cama, tardes de praia, o ocasional passeio à tardinha, um copo na marina para rematar a noite. Em vez disso, palmilhara, atrás dela, o barlavento algarvio. Não ficara um concerto, uma festa do marisco, um parque aquático, uma rota, um monumento, um museu, uma maravilha da natureza por desfrutar. Silenciosamente, amaldiçoara o Google Maps, o TripAdvisor, a Internet em geral.
Sair do carro fora como entrar num forno.
— Que calor — balbuciara ela, chocada.
Ele rira-se. «Que calor» soava ridículo numa tarde de agosto no Baixo Alentejo. «Calor» não descrevia nem de perto nem de longe a sensação de estar ali, o estado de alerta do corpo perante aquele ar parado, tão quente que se podia tocar, que fazia duvidar que a respiração era possível.
— Sabes que esta zona é reserva da Biosfera da UNESCO? — dissera ela, esperando despertar-lhe o entusiasmo. — Por causa das abetardas.
O olhar cético dele varreu a planície tórrida e desolada que se estendia para lá do vilarejo.
— O que raio é uma abetarda?
— Uma espécie de pássaro. Acho eu.
Apesar de estar agora a caminhar havia uns bons três quartos de hora — uma hora e pouco, no máximo — ela ainda não vira nenhuma abetarda. Verdade seja dita, nem sabia o aspeto de tal ave. Se é que era uma ave. Tirou o telemóvel da mala no intuito de descobrir, mas encontrou-o desligado, apesar da bateria nos 90%. Estava demasiado calor para um cérebro eletrónico.
O trilar metálico das cigarras era o único som que perfurava o infindável deserto branco amarelado. Cobriu, com os antebraços, a cabeça que já ardia sob a manta impiedosa do sol. Agora que pensava nisso, também nunca vira uma cigarra. O zumbido estridente emergia das próprias árvores, como um alarme. Sentiu uma náusea.
Ele ficara no café, em Namorados. Único cliente no estabelecimento, bebia uma cerveja ao balcão e confessava ao dono o seu cansaço.
— Atão e a moça foi assim meter-se ao caminho, com esta calma?
— Calma? Se há coisa que ela não tem é calma. Até na volta das férias, tinha de ir percorrer um trilho para não desperdiçar a tarde.
O dono do café sorriu.
— Não, home, tou falando deste calmeiro. Do calor. Tá tempo é de a gente tar sentados.
Só mais um bocadinho, só até chegar àquela árvore e depois sento-me à sombra, pensou ela.
Os pés ardiam-lhe mais do que nunca. As pernas, descobertas abaixo dos joelhos, começavam a ficar vermelhas. Os braços estavam com pele de galinha, um arrepio que lhe subia pela nuca, repetindo-se uma e outra vez em ondas. O trrr das cigarras parecia intensificar-se com a temperatura, como se alguém tivesse rodado um botão para aumentar o lume. O horizonte ondulava.
A árvore estava muito mais longe do que aparentara, mas acabou por lá chegar e deixar-se cair sobre uma raiz saliente. Tirou as sandálias, cujo couro já lhe queimava as solas, e pousou os pés no chão. Esperou por um alívio, um fresco, mas não havia vento, e a sombra era rarefeita. O calmeiro empurrava-a para baixo. Levou a mão à testa, surpreendentemente seca, e fechou os olhos. Quanto tempo teria passado? Sem telemóvel, não podia ver as horas nem — apercebeu-se — ligar-lhe, pedir-lhe que esperasse por ela, implorar-lhe só mais um bocadinho de paciência, da que ela sabia que ele andava a perder.
Fechou os olhos um momento, esperando que tudo parasse de girar. Encostou-se ao tronco da árvore e olhou para cima, para a copa. Os ramos tremulavam. Como é que tremulavam se não havia vento? Fechou os olhos outra vez, com força. O zumbido das cigarras estava mais alto do que nunca. Como seria uma cigarra? Abriu os olhos. Os ramos mexiam-se, esticavam-se, deslizavam na sua direção. Um grito formou-se-lhe na garganta ressequida, mas não saiu. O esforço fê-la tombar. Tinha tanta sede.
De cara espalmada na terra, teve a certeza de que era a árvore que a consumia. Não, uma criatura em forma de árvore — uma abetarda? — que lhe sugava os líquidos do corpo, para alimentar as suas mil gargantas metálicas, a crocitar aquela canção de regozijo. Era isso. As cigarras nunca existiram.
Em Namorados, ele viera à porta do café, de sétima cerveja na mão, esperando vê-la aparecer no caminho a qualquer momento — já lá iam mais de três horas! Mas nada se movia na paisagem. Apenas lá ao fundo, muito ao fundo, um vulto alado volteava, acima de um chaparro solitário, desenhando círculos cada vez mais apertados.
— Ó Sr. Zé, venha cá ver. Aquilo ali é uma abetarda?
O homem veio à porta, riu-se e abanou a cabeça. Após estudar os movimentos da ave, acrescentou:
— Capaz de ser é um abutre.
SOBRE A AUTORA
Marta Fonseca nasceu em Montemor-o-Novo e cresceu dentro dos livros, onde ainda vive grande parte do tempo. A curiosidade acerca do mundo natural levou-a a estudar Medicina Veterinária, que exerceu durante alguns anos — até as Letras levarem a melhor e a puxarem para a Tradução. As possibilidades da tecnologia inclinam-na para a ficção científica, o fascínio pela mente humana levou-a a aventurar-se no terror. Tem publicados os contos «Senhora da Boa Hora», na Antologia Ficção Especulativa Queer (2019), e «Os Outros», em Des/pudor – Uma Antologia Portuguesa (2023).