Cantam as Sereias

de Inês Montenegro

 

A garrafa passara de uma geração para outra sem nunca falhar: a única herança que se mantinha, quaisquer as épocas, quaisquer os regimes, quaisquer as perdas patrimoniais. Pequena, vidro embaciado, rolha de cortiça.

Nunca aberta: um aviso, mais que um acaso.

«Prende o canto das sereias», contara o pai, na infância do filho.

 

(alertara o pai, no leito de morte)

 

«Apanhado pelo teu tetravô.»

 

(o pescador, o desertor)

 

«Nunca a abras.»

Em miúdo, fascinara-se. Em adulto, enfadara-se. Saldadas as dívidas que o pai lhe legara após defunto, sobrara um casinhoto e a garrafa. Inútil, velharia, vazia: quem poderia prender uma canção?

Num ímpeto de raiva, atirou-a contra a parede do casinhoto. O vidro partiu, e as vozes libertaram-se, cantigas como espumas do oceano, tão belas quanto cruéis. Caiu de joelhos, tapando as orelhas, de tímpanos a sangrar.

Os olhos esvaziados de vida.

 

(o preço das canções aprisionadas)

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945


SOBRE A AUTORA

Inês Montenegro

Inês Montenegro escreve sobretudo ficção especulativa. Tem contos publicados em antologias e fanzines, tanto portuguesas quanto brasileiras. Trabalha como revisora freelancer, tendo concluído o mestrado de Edição de Texto pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas de Lisboa. Pelo meio, vai diversificando as experiências laborais e os projetos de voluntariado cultural. É nortenha de alma e nascimento.

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