Carências
de Dália Rodrigues
Marlene chegava sempre cansada, depois do trabalho. Só queria tomar um banho e jantar. Queria silêncio, os pés esticados no sofá e talvez um qualquer episódio de uma série televisiva leve. Dias pesados, de gritaria, de colos, de ralhetes, de castigos, de zangas, de choros, de… crianças e respetivas criancices. Fartinha de putos!
Hugo recebia-a em casa, no sofá, de pijama polar e cabelo desgrenhado. Levantava-se, normalmente de comando da televisão ou da consola na mão, e abraçava Marlene ainda antes de ela pousar a mala ou despir o casaco. Era um abraço apertado, longo, de quebrar costelas, sempre acompanhado de:
— Meu amorzinho lindo, tive tantas saudadinhas tuas o dia todo!
Seguia-se um beijo nos lábios, nas bochechas, no nariz, na testa, no cocuruto. A barba sempre a raspar a pele cansada de Marlene.
— Estou cansada, Hugo. Tive um dia de merda. Vou só tomar banho. Podes fazer o jantar?
— Oh, mas tu ontem disseste que hoje cozinhavas aquele teu guisado. Estive o dia todo a desejar o guisadinho…
Marlene revirou os olhos.
— Não estou mesmo com paciência. Faz qualquer coisa congelada… Sei lá.
Ele baixou os olhos, fez beicinho e rastejou os pés até à sala.
Marlene voltou a revirar os olhos e suspirou. Seguiu para o quarto, onde se despiu e agarrou num pijama lavado. Quando se virou para seguir para a casa de banho, Hugo estava à porta do quarto.
— És tão bonita.
— Obrigada.
E abraçou-a novamente, as mãos a percorrem-lhe o corpo inteiro. Apalpou aqui, ali, acolá. Deu festinhas aqui, ali, acolá. Tocou em cada centímetro do seu corpo.
— Hugo, tenho mesmo de ir tomar banho. Estou toda suada e nojenta. Vá.
— Só mais um beijinho… — Hugo agarrou-lhe o rosto e beijou-a com força, demoradamente. Depois, com os lábios ainda a sobrevoar os dela, lembrou-se: — Posso tomar banho contigo?
— Não, desculpa. Quero só mesmo ter um momento de paz.
— Oh, sabes que eu gosto… — Os olhos de carneirinho mal morto estamparam-se-lhe no rosto.
— E tu sabes que eu não gosto.
Hugo retornou cabisbaixo ao sofá, onde se deitou. Marlene soltou mais um suspiro, trancou-se na casa de banho e ligou a água. A paz. O silêncio. A solidão necessária.
Com a tensão mais baixa, Marlene saiu para a cozinha e aqueceu uma lasanha diretamente tirada do congelador para o microondas. Sentou-se à mesa da cozinha e engoliu o combustível alimentício em movimentos mecânicos.
— Amor… — surgiu a voz de Hugo.
— Hum?
— Vens aqui para o sofá, para ao pé de mim?
— Estou a comer, Hugo.
— Eu sei… Comes aqui, comigo.
Marlene expirou todo o ar que tinha guardado nos pulmões, enquanto esfregava os olhos e a testa. Massajou o pescoço e limpou a voz. Pegou no recipiente da lasanha e no garfo e sentou-se no sofá, ao lado do namorado. De imediato, Hugo aproximou-se, colocando os corpos em contacto direto, grudado: perna com perna, joelho com joelho, cotovelo com cotovelo, ombro com ombro, e uma mão na coxa dela.
A perna de Marlene começou a saltitar. Terminou a refeição rapidamente.
— Agora, fazes conchinha comigo?
— Acabei de jantar… — E viu os olhos de carneirinho mal morto. — OK. Mas quando nos formos deitar, pode ser?
Hugo mordeu a bochecha e limpou a garganta, sem resposta. Mesmo assim, colocou um braço sobre os ombros dela, com a respiração mesmo ali, aos ouvidos de Marlene, a exercer pressão.
— Pronto, está bem! — Marlene bufou.
O sorriso de Hugo rasgou-se de orelha a orelha. Deitou-se, e Marlene seguiu-lhe o movimento, encaixando o seu corpo no do namorado.
Suspirou pela enésima vez.
Pouco a pouco, Marlene começou a sentir a réstia de energia que tinha a sumir-se. O corpo ficava mole, pesado, dormente. Seria do cansaço e da posição, certamente. Tentou ajustar-se, mexer-se dentro daquele sufoco apertado da conchinha.
Mas os braços não mexeram, nem as pernas, nem o pescoço. Sentia os músculos presos, a pele quase fundida com a de Hugo, que a prendia cada vez mais na sua demonstração de carinho.
Baixou o olhar: os calcanhares e a barriga das pernas desapareciam nas pernas de Hugo, já só se conseguia distinguir o seu corpo pelas unhas dos dedos dos pés pintadas.
Marlene gritou, piscou os olhos várias vezes para acordar do pesadelo. Esperneou, remexeu-se, mas também os seus braços se fundiam com os do namorado.
— Está tudo bem, amor. Tenho tantos miminhos para te dar e tu nunca queres… Até parece que não gostas de mim. É só mais esta conchinha. Shh. Está tudo bem.
Anulada pelo buraco negro humano, o último pensamento de Marlene nem lhe pareceu seu. Em segundos, as carências de Hugo engoliram-na por completo.
SOBRE A AUTORA
Dália Rodrigues
Escritora, tradutora, revisora, editora, designer editorial. Desde sempre apaixonada por histórias e personagens que nos deixam desconfortáveis e finais abertos. Inspirada por tudo e por nada, por sonhos e pesadelos, pelo reflexo da água e pela sombra da floresta. Escreve desde que se conhece e conhece-se desde que escreve. Participa em várias publicações literárias online e físicas, principalmente com terror e poesia.