Casa de Família

De RD Lobo

 

Aquela casa traz sempre más memórias. Por muitos males que lhe aconteçam, as memórias de lá são sempre piores. Estar agora frente ao portão do jardim, a olhar para aquela vivenda que já era mais da natureza do que dele…

Fechou os olhos e respirou fundo. E lembrou-se. Do pior dos piores… Do homem que vivia no sótão.

No início, era uma pessoa agradável. Jovem, nos seus vinte e muitos anos, sempre vestido com calças e camisa passadas impecavelmente, com sapatos de pele engraxados e reluzentes. A melhor parte era o sorriso sempre mais rasgado no lado direito da cara, mas discreto o suficiente para não ser espalhafatoso.

Ao atravessar o jardim, tirou a chave do bolso, um movimento que havia feito tantas vezes, mas que agora lhe parecia estranho. Experimentou a fechadura, com alguma esperança de que a ferrugem impedisse o mecanismo de rodar. Assim, não teria de entrar. Talvez o destino tomasse essa decisão por ele. Quase como uma respeitosa vénia, a porta abriu-se, libertando o ar pesado e abafado que guardara durante tantos anos. Hoje, não era o seu dia de sorte.

O rapaz levou a mão à boca. Não que o odor o agredisse, mas lembrava-lhe o cheiro do sótão, quando o homem que lá vivia começara a desleixar-se. Primeiro, foi um dia em que o colarinho da camisa não estava direito. Depois, outro em que as calças não tinham ficado bem passadas. Foi mais ou menos nesse ponto que o rapaz começou a ter problemas com os pais. Agora, ao olhar para trás, percebia que tinham sido cenas típicas da adolescência. As noites tardias, as notas da escola que iam sofrendo, e depois quando descobriram aquele maço de tabaco…

O rapaz vagueou pela casa, meio em jeito de nostalgia, mas sobretudo para evitar o ter que subir. No andar de cima, estavam os quartos. Dele, dos pais, e um vago para os hóspedes. E acima disso, o sótão. 

O dia em que decidiu sair de casa não foi nada de especial. Foi um acumular de coisas. Começou a guardar dinheiro e falou com amigos que pudessem dar-lhe guarida, pelo menos por uns dias.

Durante essas semanas, em que viveu naquela casa a pensar na vida fora dela, o homem do sótão envelheceu décadas. Na altura, o rapaz não percebeu o que tinha acontecido. As camisas ficaram encardidas, as calças gastas e rafadas. O cabelo cresceu selvaticamente e a barba amareleceu. O rapaz nem sabia que o homem fumava. Mas também não percebia por que razão mais ninguém na casa parecia interagir com o homem.

Enquanto subia para o segundo andar, pensava no dia em que os pais tinham descoberto o que ele planeava e o expulsaram de casa. Os gritos. As acusações. O bater do portão. O homem a olhá-lo da janela do sótão.

Finalmente, chegou às escadas para o sótão. A porta (ou o que restava dela) deixava espreitar os degraus de madeira que aguardavam do outro lado. A dobradiças lançaram um protesto agudo, mas não deixaram de fazer o seu trabalho. Os degraus, esses, não quiseram quebrar a solenidade do momento. E no topo, no final da escadaria, lá estava o homem. Exatamente como o rapaz se lembrava dele, exceto os olhos fechados e a pele pálida.

Só muitos anos depois de ter saído em raiva daquela casa, depois de muitas noites ao relento, más companhias, drogas e tudo o resto, só aí ele percebeu quem era o homem e o que lhe tinha acontecido.

Afinal de contas, nada mata o futuro como desistir dele.

 

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SOBRE O AUTOR

RD Lobo

«Estou a escrever um livro» é uma ideia várias vezes verbalizada por RD Lobo, mas a vida e o crítico interior foram mais fortes e as histórias ficaram para depois. Agora, há que recuperar o tempo perdido, uma palavra de cada vez.