Cerdas Impertinentes

De Francisco Estevão Rei

 

O turno da noite era, sem dúvida, o mais interessante. Durante o dia, o tipo específico de trabalho que empreendia era afetado pelo rebuliço inconsciente que se processava pelas ruas do vilarejo, que não só servia para amenizar a sofreguidão a que gostava de recorrer como também dificultava a sua tarefa. Não havia maneira de as ruas ficarem varridas em condições se a populaça insistisse em pisotear papéis e deitar beatas para o chão… para não falar nos cães que passavam a vida a esfocinhar sacos de plástico manchados de gorduras apelativas e, consequentemente, a criar ainda mais lixo. E o mesmo se aplicava às gaivotas, estridentes e arruaceiras, que ninguém sabia de onde tinham vindo nem por que razão, dado que o curso de água salgada mais próximo se situava a mais de 200 quilómetros.

Maria de Jesus trauteou uma cantiga para quebrar o silêncio monocórdico da madrugada, mas logo abriu mão dela. A verdade nua e crua era que a tarefa que desempenhava era intrinsecamente ingrata, entendida desde sempre como própria dos iletrados. Algo que ela não era. Longe disso, carregava no seu imo a sabedoria dos séculos, o gnosticismo inexorável de civilizações subversivas. A tarefa, porém, permitia-lhe a imensa capacidade de passar despercebida na multidão, sem que por tal se sentisse inferiorizada. Esse era um dos seus grandes trunfos. Porque, de alma e coração, era uma notívaga, sendo a noite sua confidente e a Lua sua conivente.

A vassoura de cerdas ásperas e pulverulentas restolhou no silêncio, com um som de ceifa impertinente e impiedosa. O ofício de varredor de ruas poderia ter sido outrora reservado aos homens. Essa prevaricação de géneros, contudo, parecia ter-se atenuado ou desaparecido com o raiar do novo século. Homens e mulheres eram, hoje, justos concorrentes na maratona das oportunidades. Pessoalmente, nada disso importava; pelo menos, no que lhe dizia respeito. Era varredora desde que se lembrava. Viera de uma terriola resguardada do progresso pelas vertentes escarpadas da serra há uma incerteza de anos para trabalhar na vila e dera por si com uma vassoura na mão, a empurrar um carrinho que gingava e rangia e ameaçava desintegrar-se a qualquer instante, enfiada contra sua vontade numa estéril farda laranja com faixas refletoras, imposta pelas novas regulamentações do governo central. O vestuário oficial, um manto intransponível de pontos de interrogação, inviabilizava o mais antigo dos sentimentos humanos: a curiosidade. Ninguém queria saber quem ela era, ou o que raio ela era. E assim percorria a vila, deixando o carrinho no qual recolhia o lixo no início das ruas, das betesgas e dos passeios, varrendo-os pela noite dentro como se nada mais houvesse a fazer até ao fim dos tempos senão varrer, varrer, varrer…

Ocasionalmente, ao entrar nas vielas, ratazanas, gatos e outros animais vadios surpreendiam-na com um espetáculo de fuga desenfreada, em nada furtiva ou silenciosa. Essas e muitas outras peripécias insignificantes confortavam-na e divertiam-na, permitindo-lhe executar o seu trabalho mais facilmente. A repetição delas dentro do cinemascópio da sua cabeça fazia com que o tempo passasse mais depressa. 

Hoje, estava quase a terminar o serviço. A constatação desse facto fez com que começasse a varrer com mais ligeireza. Mais do que nunca, perguntou aos seus botões por que razão as ruas não eram alcatifadas em vez de alcatroadas, pois dessa forma bastar-lhe-ia levantar a ponta do tapete e varrer todo o lixo para debaixo do mesmo. Esse pensamento fê-la rir-se a bandeiras despregadas, enchendo a rua com um eco obsidente, rechinante. Acercou-se do último contentor de lixo da zona. Abriu a tampa com cuidado e uma enxurrada de lixo espalhou-se pelo chão. Baixou-se e começou a remexê-lo com um frémito inusitado, até que os olhos brilharam e se viu a soltar um murmúrio grave de triunfo. Agarrou no frasco que procurava e desarrolhou-o. Um odor mais desagradável do que o próprio lixo fez murchar de imediato a atmosfera em redor. Retirou um pano de desperdícios do bolso lateral das calças laranja e verteu sobre ele um pouco do bálsamo, com o qual untou escrupulosamente o cabo da vassoura. No final da operação, voltou a rolhar o frasco e meteu-o no bolso, lançando o pano para dentro do carrinho. Então, colocou a vassoura entre as pernas, parecendo, por instantes, uma criança a brincar com um cavalinho de pau. 

Um jovem que fumava à janela viu a varredora de ruas levantar voo e desaparecer na noite.  

 

* * *

 

Maria de Jesus adorava sentir o vento frio que tentava abrir-lhe vergões nas faces pálidas, romper o dossel negro da noite e observar a vila profundamente adormecida, lá em baixo, cada vez mais pequena, cada vez mais remota. Era como se se fosse aproximando, passo a passo, segundo a segundo, do olho hipnagógico da Lua. 

A viagem foi mais rápida do que desejaria. No entanto, sabia que não era propriamente uma viagem de recreio. Chegou num ápice ao local da reunião, uma clareira situada num recôndito ermo do coração da serra. Duas ou três línguas de fogo circunscritas por muralhas de pedra esquadrinhavam a noite com uma luz esparsa, difusa. Uma melodia apaziguante acompanhava o som agudo da ventania que ululava por entre as árvores. Num dos extremos da clareira, erguia-se um enorme rochedo que se destacava das restantes formações sedimentares por ter grosseiras semelhanças a um trono. Os musgos e os líquenes que haviam crescido nele ardiam em revérberos de verdume, enchendo o ar com uma peculiar fragrância acre. 

Desmontou da vassoura e dirigiu-se para o centro da clareira. De cima do trono, uma silhueta negra de olhos brilhantes meneou a cabeça na sua direção, em tom de cumprimento. Depois, continuou a tocar a sua flauta. Maria de Jesus olhou em redor. Sorriu com genuína satisfação. Já haviam chegado quase todas as varredoras dos conventículos das redondezas.

SOBRE O AUTOR

Francisco Estevão Rei

Desde tenra idade que Francisco Estevão Rei é um adepto fervoroso do género de terror em todas as suas manifestações (criativas, artísticas e derivadas da vida real). Assim, não é de estranhar ter sido na ficção especulativa que encontrou o género que mais lhe dá prazer escrever — com particular enfoque em temas relacionados com o sobrenatural, o fantástico e o horror. Tem orgulho na sua conhecida obsessão pelos detalhes e pelo seu espírito crítico demasiado exacerbado, caraterísticas que lhe granjeiam pouca popularidade, mas uma imensa paz de espírito.