Cinema Marfim
de Carolina Fidalgo
Só saio de casa à sexta-feira. Nos outros dias, nada me faria arriscar o mundo lá fora. Não gosto de pessoas. Apenas saio às sextas porque, no acanhado cineteatro Velho Mundo, exibem filmes da Era do Marfim.
A minha irmã Noémia não entende por que razão gosto desses filmes velhos, com linguarejares afoiçados. Diz que são vestígios duma pré-história de gente bárbara que até animais comia. Ela terá razão: era com certeza uma sociedade primitiva. Mas, para mim, o cinema contemporâneo é disforme como argamassa, de narrativas mansas e linguagem simples. Os filmes antigos são uma obra-prima de minúcia, debruados a sangue, complexos e frios como navalhas.
Hoje à noite, está uma miúda nova na bilheteira. Em vez de me estender o bilhete, tenta comunicar comigo verbalmente. Com um suspiro, aponto para a minha t-shirt. Ela leva um bocado a ler a lista de advertências nela impressa. Vai-se acumulando uma fila atrás de mim e começo a suar. Por fim, ela sussurra um pedido de desculpas, quase mudo, e dá-me passagem. Não me dirige mais a palavra.
Ocupo um dos lugares centrais na sala quase vazia. Um casal senta-se à minha direita, com três lugares de intervalo. O filme começa.
É uma história de amor. Cada vez que os lábios da heroína se arrepiam num sorriso, os meus músculos contraem-se com enlevo. Não são só os sons, como conto à Noémia — o «t», o «z», o «s» —, que me provocam prazer. São também as bocas abertas e obscenas, integralmente feias e animalescas como uma flor-cadáver armada. Quando os protagonistas se beijam, imagino as suas presas chocando sem rachar, o quietíssimo estalido de marfim no marfim, a humidade de carne na carne, e pergunto-me como seria, por uma vez, meter um peito de ave na boca, o tecido vital de criaturas reconhecidamente inteligentes, cortando e moendo com violência uma coisa que voa.
Quando o filme termina, levanto-me do lugar e espero que o casal à direita se levante. Quando as luzes se acendem, procuro-lhes nas bocas inofensivas uma malícia idêntica à minha, detida ao primeiro brotar de dentição definitiva. Não a encontro. As gengivas rombas arrefecem-se-me sob a língua quieta.
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945
SOBRE A AUTORA
Carolina Fidalgo
Nasceu em Coimbra em 1992, mas cresceu entre a Gardunha e a Serra da Estrela. Estudou Línguas Modernas na Universidade de Coimbra, tem um mestrado em Literatura e outro em Estudos Editoriais. É professora de Português. Já morou na Escócia e na China. Agora, vive na Suécia.