Colheita da Primavera
de Susana Laires
Seguia-a com um olhar atento. Tinha-a visto crescer, mas pouco reparara nos seus traços, como se Deus lhe tivesse colocado as mãos à frente da vista e só conseguisse acompanhar o vulto por entre os dedos. Agora, a escassos dias de atingir a maioridade, via-a verdadeiramente — bochechas altas como montanhas, que se precipitavam num vale até ao planalto da mandíbula, nariz pequeno e afilado, cabelos de seda negra. Era bela. Um botão de rosa prestes a desabrochar. Tinha até nome de flor.
Lembrava-se da primeira vez que vira Violeta entrar pela casa de acolhimento, quando o calor do verão lhe ardia na face e o obrigava a varrer as pétalas secas caídas das árvores (e como tinham brotado tantas flores naquela primavera!). Ela tinha cinco anos e um sem-fim de marcas no rosto. A língua pouco se desprendia, apesar de haver quem vivesse uma vida sem metade para contar. Aos poucos, as feridas foram sarando, o sorriso ganhou folhagem, a garganta mais cor. Riu-se ao pensar como a felicidade se infiltra nas crianças, mesmo quando estas lhe parecem imunes.
Agora, estava prestes a perder a inocência.
Depois de cada dia de trabalho, Bruno riscava o calendário e contava o que faltava até ao 18.º aniversário de Violeta. E rezava. Pedia a Deus que lhe desse forças. Regia-se apenas por uma regra: nunca arrancaria pétalas até que estas se estendessem em toda a sua glória, se maturassem e exibissem. Nunca tocaria naquela flor enquanto menina. Antes da poda, apreciaria o quão garridas eram as suas formas, sentir-lhes-ia o cheiro e a delicadeza ao tato, como fizera com tantas outras que no lar tinham desabrochado.
Tal como no jardim que cuidava, a vida também tinha o seu ciclo — depois da floração, a polinização, o alimento e a morte. No fim, seria queimada até ao caule com o fogo que residia nele. Espalharia as cinzas em redor do altar que lhe construíra. O verdadeiro sacrifício era conter a fome antes da colheita.
SOBRE A AUTORA
Susana Laires
A cabeça nasceu-lhe nas nuvens em 1993, e por lá tem ficado. Pouco há a fazer; é defeito de fabrico. A escrita foi dando voz às ideias que lhe surgiam e calando o silêncio da adolescência. Com o tempo, passou de hobby a profissão. Licenciou-se em Ciências da Comunicação, pós-graduou-se em Comunicação Estratégica e em Jornalismo. Foi jornalista, editora, gestora de redes sociais e é, atualmente, copywriter.
Apaixonada por História, Mitologia Grega, Literatura e Epidemiologia, mas incuravelmente atraída pelo bizarro e sombrio. Talvez por isso se vista quase sempre de negro, apesar de ver a vida com cores garridas.