Como os Ossos Quebram
de Raquel Fontão
Maria tinha os ossos frágeis. Tão frágeis que, quando entalava o dedo mindinho da mão entre as almofadas do sofá, ele se partia. Tão frágeis que estalavam sempre que agarrava num copo de plástico ou que, se batesse com o pé na perna de uma cadeira, de madeira antiga, ainda pesada, lhe inchavam os dedos logo de seguida, e Maria lá tinha de ir para o hospital. De novo. Quase todas as semanas.
Maria tinha os ossos frágeis.
Maria tinha dois anos.
Os pais, mesmo com uma atenção redobrada, não sabiam como agir com aquela criança. Osteoporose congénita, disseram-lhes. Uma herança que não percebiam de onde surgira. Extenuaram-se a tentar resolver o problema, a procurar a sua origem, e logo descobriram que nada disso interessava. Tinham era de estar atentos. Atentos às complicações. De cabeça esgotada, com os corpos abatidos e cambaleantes do cansaço extremo, constantemente concentrados em desvendar possíveis acidentes domésticos, lá foram conseguindo protegê-la. Ou, pelo menos, acorriam prontamente sempre que algo acontecia. Todas as semanas.
Maria cresceu. Deixou de ter dois anos. Mas não deixou o ar frágil para trás. Tinha o rosto pálido por não poder brincar no exterior, não tanto como gostaria, e uma estatura delgada por não exercitar os músculos. A sua vida passara a ser protegida por braçadeiras e almofadas, com os pulsos e cotovelos resguardados, de mãos refugiadas em luvas de uma grossura inesperada. E continuou a crescer. Isolada. Não fosse ser ameaçada por um qualquer contacto. Mesmo que bem-intencionado.
Até que se viu sozinha. Sem pais. Mortos, sem se saber bem como — tão jovens e já tão esgotados. Em pouco tempo, Maria viu-se desprotegida pela primeira vez. Ou talvez livre. Afinal, partir ossos — para quem se habitua desde cedo às mazelas — não doía assim tanto. Decidiu, por isso, aventurar-se pelo mundo.
Não. Aventurar-se, não. Pensou bem e decidiu que não sairia. Não destruiria o trabalho feito pelos pais até então.
Maria traria o mundo até si.
Aprendera desde cedo que esse mesmo mundo — imenso e ali tão perto — se encontrava à distância de um clique. Bastava um computador, uma ligação à Internet e um bom perfil para conhecer novas pessoas. Boas. Más. Maria não queria saber. Queria apenas mostrar-lhes a sua fragilidade. Dar-lhes a conhecer as suas sombras. Ensinar-lhes que também elas — fortes, inconscientes daquele submundo — podiam ser frágeis. Uma comunidade de fragilizados.
O primeiro contacto foi fácil. Um homem. Queria companhia. E, isso, Maria podia oferecer. Com apenas algumas mensagens trocadas, disponibilizou a sua morada.
*
O homem apareceu-lhe à porta. Era bem-parecido, bem-vestido, com um perfume inebriante. Maria, na sua delicadeza fantasmagórica, quase vitoriana, também era bela. De uma beleza debilitada. O homem sorriu.
Sentaram-se no sofá. Maria ofereceu ao convidado um copo de vinho tinto, o odor de frutos secos completando o ambiente escuro e intimista da sala. O vinho foi descendo, Maria também bebia, feliz e embriagada — pela vida, pela novidade. Talvez lhe desse coragem naquele primeiro encontro.
Quando o líquido fez efeito, o homem já balbuciava sem sentido, com a cabeça a escorregar lentamente até repousar nas almofadas gastas de uma infância já longínqua. Maria parou de sorrir. Chegara a hora. Da próxima vez, tentaria deixá-los num estado mais sugestivo, para que não adormecessem assim tão rápido. Encolheu os ombros e levantou-se, devagar, não fosse a anca estalar e prender-lhe o movimento. Estragar-lhe a noite tão bem preparada. Respirou fundo. Não podia mexer no homem. Sabia que não teria forças para isso.
Foi buscar o alicate do pai, aquele muito bem escondido na garagem, para que a pequena Maria não conseguisse alcançá-lo e entalar mais um dedo. O polegar ou o indicador. Mas Maria crescera. Era mais inteligente, conhecia as suas limitações. Com pouca força, foi torcendo os dedos do homem — de quem nem se lembrava do nome. E torcendo e torcendo, os tornou em artroses vivas. Mas claro, tinha também de fazer alguma coisa aos pés. Ou o homem fugiria assim que acordasse. Foi buscar mais uma das ferramentas do pai — com cuidado, não fosse o peso danificá-la a ela. Desta vez, um torniquete. Uniu os dois tornozelos, tão apertados que se via a pele já cortada, vermelha de inflamação. Mas isso não bastaria para fazê-lo ceder. Teria de os torcer até partir. Mais uma vez, respirou fundo e lentamente os torceu e torceu, até completarem duas voltas.
Maria respirava com peso, o ar saí-lhe do peito tão sonoro que teve medo de acordar o homem. Um dos seus pulsos estalou. Não havia nada a fazer, no entanto. Com aquele esforço todo, seria de admirar que ainda nada de mal tivesse acontecido. Amanhã, teria de visitar o Dr. Hugo de novo, mas nesta noite aguentaria a dor. Porque era a primeira vez que encontrava uma companhia. Alguém tão frágil como ela.
Hoje, não iria a lado nenhum.
Hoje, iria divertir-se.
SOBRE A AUTORA
Raquel Fontão
Raquel Fontão nasceu em Vila Nova de Gaia, Portugal.
Entrelaçou, desde cedo, os universos da música e da escrita. Estudou saxofone na ESMAE e licenciou-se como professora do ensino básico, com variante de educação musical na ESEP.
Atualmente, trabalha como professora de música e adora escrever todos os dias, transfigurando harmonias em texto. A sua predileção pelo modo menor faz com que o género de terror seja o seu preferido, perseguindo, com gosto, os monstros que a habitam.
Vive no Porto com o seu marido, filhas e as suas duas galinhas.