Consumação
de Laura Gonçalves
Os rangidos do soalho acordaram-me. Olhei para o relógio eletrónico repousado na mesa de cabeceira. Duas horas e trinta e sete minutos. Sustive a respiração. Os passos vinham do corredor, pesados e confiantes, contudo reconheci-lhes outra característica: o som áspero antes de cada passada. Bastou-me para conhecer o porvir. Agarrei-me à dobra do lençol e engoli um gemido.
A maçaneta da porta deslocou-se, e uma luz, primeiro fímbria, depois raio, por fim explosão, invadiu o meu quarto. Quando os olhos se ajustaram à claridade ictérica do corredor, vi um moscardo circundar o candeeiro de teto. O som monocórdico do inseto privou-me do átimo em que a figura surgiu. Um vulto. O estrondo da porta contra o batente apagou o zunido, envolvendo o compartimento em trevas. Distingui os olhos sanguinários, e a humidade do seu arfar tocou-me o rosto. O hálito, já o adivinhara pela qualidade do andar, era podre e cheirava a whiskey. Gritos e grunhidos borbulharam. A dor irrompeu-me no maxilar, na anca, nas nódoas negras antigas até me prostrar ao chão. O inimigo arremessou-me contra a parede, e o meu crânio absorveu o impacto. Um líquido morno escorreu e penetrou no meu ouvido direito.
Gritei, implorei. Mas, no fundo, sabia ser debalde. Este monstro jamais desistiria da sua vingança. Recordei-me das súplicas da sua filha às minhas mãos. Também eu as ignorara, e a sua carne suculenta acabara no meu estômago.
«A fome será a tua ruína.» Cumpria-se a profecia.
SOBRE A AUTORA
Laura Gonçalves
Laura Elisa Faria Gonçalves nasceu em 1992, no Jardim da Serra, uma pequena localidade na Ilha da Madeira. Após concluir a sua formação em Medicina e especialidade em Anestesiologia, regressou à literatura. Escreve contos para concursos literários e está a preparar o seu primeiro livro. Partilha o gosto pela leitura e escrita nas suas redes sociais. Vive com a família, no local onde nasceu.