Convites

de Inês Garcia Morais

 

Vestia o casaco mais quente que tinha e, mesmo assim, tremia. A noite de Outono ainda reflectia os dias cálidos de Verão, mas era o gelo nos meus ossos que me apunhalava.

Já não conseguia vomitar nem chorar, mas o meu corpo continuava o seu processo de rejeitar o meu coração apodrecido — as convulsões constantes e uma despersonalização que não permitia consolo; o desgosto alastrado como uma bactéria impermeável, para a qual não havia remédio possível.

As mensagens no telemóvel dele tinham confirmado o que a minha pele e a minha alma já sentiam; a rejeição e a indiferença eram o que me sobrava do amor da minha vida. A sua afeição e cuidado, por outro lado, estavam reservados para quem ele jurara ser uma das suas melhores amigas de sempre, «um dos rapazes». 

Tinha sido eu a dar-lhe o filho que ele sempre apregoara querer ter, depois de uma série de sacrifícios dolorosos e humilhações agudas. Tinha tomado o seu nome como meu, contrariando a minha vontade. «Vamos ser uma família para sempre», dissera-me ele.

Tremia tanto que todo o corpo me doía. Sozinha na ponte, não lutava contra a evidência de que o rio me parecia agora convidativo, o meu fim patético também sinónimo da minha paz.

— Sim, vai doer bastante. Há mortes mais prazerosas. Queres opções?

A tua voz sorriu-me antes dos teus dentes. Estavas à minha esquerda, como se sempre lá estivesses estado — com uma mão no bolso do fato impecavelmente engomado e a outra a acariciar a barba. Os teus olhos de ónix não se mexiam, fixos no meu rosto. Teria tido outro tipo de medo se os teus chifres protuberantes não se envolvessem em ondas de cabelo, num aroma de incenso e lareira de Inverno — como na casa onde eu crescera. Sim, teria sido um medo diferente, um medo que não brotara em mim. Eu sabia quem tu eras.

Seguraste a minha mão fria na tua, quase febril de tão quente. Beijaste-ma ao de leve, com a elegância e a certeza de uma morte selada. A dor desapareceu, e eu levantei o olhar, olhando o ponto sem retorno.

— Espero que a minha oferenda tenha sido suficiente.

O prazer na malícia embelezava-te ainda mais, prolongando o teu esgar fino. Caminhaste, circundando-me.

— A alma de uma criança de três anos, sim. Não é algo que consiga com frequência. — A tua mão pousou delicada, mas irresistível, na minha coluna, por breves segundos, até te posicionares à minha direita. — Foi irrecusável, minha cara. Parabéns. — Paraste e trocaste o tom de voz, como quem lê um rodapé. — Imagino que saibas que o teu destino será juntares-te ao rapaz.

A garganta ardera-me ao pensar nele. 

— Nem o quereria de outra forma. — Sabia que a tua curiosidade se prendia à minha firmeza. — Seremos teus.

Estavas agora próximo, tão próximo como marido e mulher no altar. O teu sorriso de político transformara-se num leve e frio curvar de lábios.

— Ela ou ele? — perguntaste.

— Os dois.

Ajeitaste o colarinho e as mangas do fato, terminando o negócio.

— Será um prazer.

Estendeste-me a mão, na despedida, esperando que a decisão se mantivesse naquele derradeiro momento. Ambos sabíamos, no entanto, que os meus dedos nos teus eram apenas uma formalidade. Os convites estavam irrevogavelmente aceites. Encontrar-nos-íamos todos em breve.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945


SOBRE A AUTORA

Inês Garcia Morais

Gryffindor nascida a agosto de 1986.

Licenciada em Estudos Anglo-Americanos (2009), com pós-graduações em Tradução e Arte e Educação. Fascinada por Poe e Gaiman; Burton, Spielberg e Aronofsky; cidadã de Gotham, Hogsmeade e Rivendell; fã de Zimmer e música dos anos 90.

Com dez anos de experiência em ensino, trabalha agora em integração e well-being.
Foi escrevendo sobre filmes e séries, e completando diversas formações
em Escrita Criativa.

Hoje, o seu propósito passa por explorar e partilhar a terapia existente nas histórias que amamos.
Acima de tudo, acredita que transformar emoções em vida contada é a mais bela das homenagens.


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