Dançar

de Francisco Horta

 

Quando Paula chegou ao quarto do filho, este ainda gritava.

— Os braços, mãe; os braços — disse o pequeno Miguel, assim que a viu iluminada pela luz de presença —, os braços estão presos.

A mãe sentou-se na cama, passou-lhe uma mão pela cabeça e tirou-lhe os cabelos suados da testa. Passou-lhe os dedos pelas bochechas, pelo queixo.

— Os teus braços estão ótimos. Olha — apontou para um deles, sorrindo.

Miguel olhou para um braço e, embora o sentisse dorido, percebeu que já o conseguia mexer. Olhou para o outro e constatou o mesmo. Com a ajuda deles, sentou-se rapidamente e atirou-se para o abraço da mãe.

— Foi outro sonho mau? — perguntou Paula, acariciando-lhe a nuca.

— A avó estava aqui no quarto, à porta, a chamar-me. — Miguel olhou para a porta, mas a imagem do sonho assombrou-o de novo e depressa escondeu a cara no peito da mãe. Continuou, entre soluços, e numa voz abafada pela blusa de Paula:
— A avó tinha a cara cheia de buracos e dentro da boca era tudo preto e não tinha dentes e os olhos eram bolas amarelas e… — engoliu a custo — a avó disse para eu ir dançar com ela.

— Oh, meu querido — disse a mãe, apertando-o. Lembrou-se da sua mãe, de quando era criança e a chamava, nos bailaricos, para dançar. Afastou-o do peito e segurou-lhe os braços como quem vai dizer algo muito sério.

— Deita-te, filho, deita-te.

Paula aconchegou a almofada do filho e subiu para a cama.

— Ficas comigo hoje? — perguntou Miguel.

— Só até adormeceres — disse a mãe.

Pensou em todas as crianças que viu, em pequena, a dançar com as mães e com os

pais, mas sobretudo com as mães. Havia uma lágrima que teimava em não cair, e sorriu.

— Sabes, filho — a lágrima escorreu, por fim —, comigo a tua avó nunca quis dançar.

Miguel sentiu novamente os braços presos.

A boca tapada.

O nariz tapado.

 

SOBRE O AUTOR

Francisco Horta

Francisco Horta nasceu em Vila Franca de Xira, em 1987, e foi criado na Subserra. Sonâmbulo, acordou diversas vezes na pedreira, para lá da serra. Durante o caminho de volta a casa, ouvia sussurros que viriam a inspirar as histórias que escreve. Licenciou-se em Filosofia na Faculdade de Letras de Lisboa. Tem como principais influências Richard Matheson e Samanta Schweblin. Vive em Almada, com a mulher, a filha e o filho.