Desencanto
de Martim Maria Ramos
Conto vencedor da 1.ª edição do Concurso de Microcontos da Fábrica do Terror
Devolvi-lhe um sorriso, talvez porque me recordou a Madalena, a minha paixão de miúdo. O velho Domingos atirou-me ao chão da traineira, com um tabefe no ouvido.
— Puta! — berrou ele, afugentando-a.
No farol, continuou a desanda: deixar-me seduzir pelo encanto da sereia significava morrer afogado, na melhor das hipóteses. Qual seria a pior?
Descobri mais tarde, quando o velho Domingos gritou por mim e por uma lata de querosene. Desci à enseada torreada pelo farol, onde um homem nu despojado sobre os calhaus se contorcia e balbuciava um Pai Nosso. A sua barriga inchada pulsava ao excruciante ritmo da polipneia e era esgatanhada até ser carne viva. Por fim, estoirou num repuxo escarlate! Entre o sangue e as entranhas, algo larval se agitava como enguias, sibilava como serpentes. O velho Domingos esborrachou uma das criaturas com a bota.
— Mata as fêmeas antes que cheguem à água.
SOBRE O AUTOR
Martim Maria Ramos
Nasceu em Cascais, mas foi criado em Mem Martins. A mãe ensinou-o a respeitar os livros. A prima Catarina obrigou-o a gostar de terror — e ainda hoje não vê um filme sem uma almofada. A professora Antonieta, no terceiro ano, disse-lhe que poderia ser o que quisesse, mas que acabaria por ser escritor. Por agora, é geólogo, nas minas de Aljustrel, e é nas galerias escuras do submundo que tem as suas melhores ideias.