Dignidade

de Ana Paula Miranda

 

Arminda mexia a sopa. Dava-lhe voltas, baralhava os ingredientes. As lágrimas escorriam-lhe como um rio em força de maré. O sal aderia à pele em sulcos de sofrimento. 

Zelda ululava aflita, pressentindo a hora do regresso do monstro.

Dia após dia, rasgava-se mais um farrapo, esgarçando o tecido da alma. Dia após dia, ano após ano. Havia quarenta anos. 

No fim de uma tarde de sexta-feira, Zelda ganiu. Arminda cerrou os punhos, encarando a espingarda. Os passos ouviam-se cada vez mais perto. Era ele. Avançou para a mulher que, pela primeira vez na vida, não hesitou. De semblante contraído, disparou. Cinco tiros. O monstro esboçou um esgar. Caiu, ensopado em sangue fétido. Zelda agachou-se e urinou em cima dele.

Na esquadra, em silêncio, Arminda abriu a camisa. Mostrou o peito mapeado de cicatrizes de quatro décadas: cortes, queimaduras de cigarro, hematomas… dignidade.

SOBRE A AUTORA

Ana Paula Miranda

Ana Paula Miranda nasceu em 1969 na cidade de Lisboa. Licenciou-se em História pela Universidade Nova de Lisboa – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Leciona a disciplina de História.
A escrita foi, desde sempre, uma das suas paixões, tendo publicado, em 2007, o livro Luís Fróis: um português no Japão no século XVI, direcionado aos mais jovens. No presente, frequenta formações na área literária e participa em dinâmicas de escrita diversificadas.