Dor
de Patrícia Sá
Observo cada uma das caras que se riem, regozijam e aplaudem o meu sofrimento. Pessoas comuns. Vizinhos. Ontem, disseram-me «bom dia, Branca!», com sorrisos abertos que lhes chegavam aos olhos. Hoje, dizem-me «arde, bruxa!», com sorrisos afiados e crueldade escrita nos olhos.
Como as coisas mudam. Aquelas pessoas modestas e afáveis não podem ser as mesmas que me atiram pedras, que uivam para que o fogo arda mais depressa, que me lançam pragas e desejos de tortura eterna.
É esta a natureza humana? Nem um raciocínio consigo coser com o calor que se alastra e me queima o corpo. Picos agudos que me cegam e perfuram enquanto um grito desalmado quebra os céus. Vem de mim. As chamas lambem-me, desejosas de devorar a carne que me guarda o espírito. «O fogo libertar-te-á, criatura do demo!», disse o Santo Padre, antes das amarras e antes das chamas. Criatura de Lúcifer, é o que sou agora. Bruxa, vampira, demónio. Antes era a querida Branca dos remédios milagrosos. Hoje, nem pessoa sou.
A dor crava-se, enterra-se e apaga tudo por onde passa. Vejo branco e solto um grito que me estilhaça a garganta. Sinto as chamas roerem-me a pele, o músculo, os órgãos, e um misto de sentimentos assola-me. Distingo um e agarro-me a ele: fúria.
Antes de me extinguir totalmente, esforço-me por fixar as faces do público deleitado. Sim, deleitem-se, pessoas néscias. Não perdem pela demora.
***
Um feto que nunca desejei carregar. Um feto que não conseguirei sustentar. Uma criatura que cresce no meu ventre e se alimenta de mim. Lágrimas queimam-me a face. Sou eu que vou morrer; o prognóstico do médico foi muito claro. A lei conhece o meu caso e atirou-o ao lixo.
Lembro-me de um tempo em que tínhamos liberdade. Hoje, os nossos corpos são ferramentas. E o que acontece ao fruto, tão cobiçado por corpos que não o meu, ao nascer? Só aí poderá morrer.
Para os vizinhos, sou o demónio. Quando fiz o meu primeiro aborto, ainda era legal, e pude fazê-lo livremente e com segurança. Hoje, regozijam com a minha dor. Sabem que não sobreviverei e, para eles, é bem feito. Pergunto-me se me teriam abortado, dada a oportunidade.
Enquanto o parto decorre, uma dor lacera-me, e um grito quebra os céus. Tudo arde dentro de mim. Como crescerá esta criança? Sem pai nem amigos? Choro pelo futuro da minha cria. Nem os vizinhos que tanto a queriam se vão importar, sei disso. Uma criança que vai crescer sem mãe, sem ninguém. Choro e choro, não por causa da dor que me corta o ventre e a vulva, mas por causa duma outra, mais profunda e dilacerante.
Lembro-me das caras de cada um dos vizinhos que me condenaram. Lembro-me do rosto daquele homem hediondo que me plantou esta semente com brutalidade. Segundo o juiz, também sou eu a culpada.
Faço questão de cravar todas essas faces no meu cérebro e agarro-me a uma fúria flamejante que se alastra juntamente com a dor. Deleitem-se, deploráveis. Não perdem pela demora.
SOBRE A AUTORA
Patrícia Sá
Patrícia Sá nasceu em 1999. Desde muito cedo que encontrou um refúgio na escrita e estreou-se como autora em 2021, com o conto «Amor», na antologia Sangue Novo. Interessa-se especialmente pelo estudo da monstruosidade na literatura, nas artes e na cultura. Está determinada a provar que o terror é um género sólido. A arma dela? Resmas de livros teóricos sobre o assunto. Sublinhados. E com post-its.