Eles Não Sabem
de Telma Cebola
Eles não sabem. Não sabem como é ter o monstro dentro de mim. Não sabem como ele comanda o meu corpo, a minha mente e praticamente toda a minha vida.
Não sei a data exata em que ele entrou em mim, mas tenho uma vaga ideia de quando possa ter sido. Devia ter cerca de 13 anos e estava sozinha na praia. Só eu e os meus pensamentos. Ao princípio, nem dei por ele. É esperto, entrou devagarinho, talvez naquele cheiro estranho que inspirei. Pelo menos, acho que foi a primeira vez que o senti. Um aperto no peito, náuseas e tonturas. A visão tornou-se turva e, de repente, tudo ficou preto. Acho que desmaiei, não tenho bem a certeza. Depois disso, tudo mudou.
Eu era uma criança feliz, sabem? Nunca me faltou nada. Tinha amigos e uma família unida. Ao entrar na adolescência, no entanto, as coisas ficaram diferentes. Não muito, porque o monstro demorou vários anos a crescer e a apoderar-se de mim. Mas a cada ano que passava, em cada passo a caminho da vida adulta, aumentava mais um pouco. E isso refletia-se em mais episódios como o da praia, cada vez mais fortes.
Cheguei a ir a um psicólogo e a um psiquiatra, a conselho de familiares. Mas ambos me disseram que tinha uma mente estruturada, sem tendências depressivas, que só precisava de «sopas e descanso». E eu aviei a receita, várias vezes, o que até acabava por adormecer o monstro. Mas ele voltava. Voltava sempre.
Um dia, já em adulta e a viver sozinha, o monstro acordou cheio de fome. Voltei a apagar e dei por mim à janela, com uma perna de fora. Foi aí que soube que ele queria matar-me.
Passaram anos depois desse episódio. Já nada era tão simples nem tão feliz. Mas eu continuava. O mostro, esse, já era parte de mim e da minha vida. E eu ia aprendendo a conviver com ele.
Achava que era mais fácil assim, até os surtos psicóticos aparecerem. Comecei a ver coisas que não eram reais, a inventar cenários dantescos. Não conseguia dormir e vivia sempre numa constante ansiedade, no sobressalto de que algo de mau estaria prestes a acontecer. «O quê?», perguntam vocês. TUDO! Todas as pessoas que amava estavam em perigo, em risco de morrer, de eu as perder… Foi assim que o monstro se apropriou do meu coração e da minha mente por completo. Agora, em vez de ser ele a levar-me à janela, era eu que queria ir.
Atualmente, eu já não sou eu. Pelo menos, por dentro. Quem me conhece acha que sou, mas só vê o lado de fora. Não sabem que o meu interior é negro, da cor do mostro (por vezes, até julgo que preferem não saber). Se calhar, acham-me mais triste ou um pouco mais apática. «Anima-te!», dizem-me. «O que precisas é de beber uns copos.» E o monstro sorri e acena com a cabeça. E eu? Eu estou com as duas pernas fora da janela.
SOBRE A AUTORA
Telma Cebola
Telma Cebola nasceu em Cascais no ano de 1985. O terror esteve sempre presente na sua vida, especialmente na vertente literária (tem toda a coleção Arrepios) e cinematográfica (passou a adolescência a ver filmes de terror de qualidade duvidosa). Escreve para libertar os seus demónios e vê na escrita uma espécie de terapia, em que a mente a obriga a passar para o papel os pensamentos menos sãos que tem. Talvez um dia esses pensamentos se transformem num livro.