Em Contramão

De Paulo Barros

 

 

Estava a conduzir na minha mão, devagar, dentro dos limites de velocidade. Estrada estreita de paralelos, pouco transitada. Dois sentidos numa reta comprida com uma lomba pelo meio, que não deixa ver os carros em sentido contrário. Só após a lomba a estrada tem distância e visibilidade suficiente para ultrapassar em segurança.

Como disse, ia calmamente, desfrutando da pacatez da estrada, com o autorrádio ligado. De súbito, vejo pelo espelho retrovisor, vindo do fundo da reta atrás de mim, um carro que se colou num ápice à minha traseira, numa condução agressiva que ultrapassava largamente os 50 km/h, limite de velocidade nas localidades. Ia claramente a mais de 100 à hora. Não gosto destes condutores que me obrigam a alterar o ritmo da condução.

À frente estava a lomba. Não dava para ver se vinha algum carro no sentido contrário. Ele, cheio de pressa e indiferente ao perigo, começou a ultrapassar-me. 

Que idiota, pensei, a ultrapassar-me sem visibilidade nenhuma. E se vem algum carro do lado de lá? Que irresponsabilidade! Irritado, comecei a dificultar-lhe a ultrapassagem. Acelerei, impedindo a manobra. Ele continuou a acelerar — tinha um carro mais potente do que o meu. Ficou ao meu lado por alguns segundos, em contramão. Olhou-me com cara de mau, gesticulou e mandou-me para a puta que me pariu. Percebi-o pelo movimento dos lábios. 

«Vai-te foder!», respondi. E mostrei-lhe o dedo do meio. 

Acelerámos os dois. Eu no meu Citroën C3, mais pequeno e frágil do que o seu Toyota Yaris quitado, de jantes azuis. Era um miúdo novo, de chapéu de basebol, provavelmente com as hormonas aos saltos. Não se controlou e desviou o carro na direção do meu, a simular que me abalroava. Eu acelerei até aos limites do meu carro. O veículo tremia por todos os lados, trepidando ruidosamente no piso irregular. 

Era preciso ser muito inconsciente! Àquela velocidade e a querer ultrapassar-me numa estrada de aldeia! Não via que, de repente, podia aparecer uma criança a correr atrás de uma bola? Que não havia tempo para travar e evitar uma tragédia? Será que estes tipos não pensam nisso? Estava decidido a não facilitar a vida a este irresponsável, que acelerara ainda mais e guinava para a direita, ameaçando amolgar-me o carro. 

Foi então que surgiu da lomba o camião TIR. O Yaris estava de frente para ele. Via no condutor os olhos de pânico, agora suplicantes, a pedir-me espaço para ultrapassar. «Nem penses, filho da puta. Vais-te foder!» 

Não cedi um milímetro, mantive-me firme do lado direito. A buzina do camião foi longa e grave, como a de um barco a sair do porto. Desesperado, o miúdo acelerou, tentando concluir a ultrapassagem no pouco espaço e tempo que tinha. 

Podia ter ficado assustado com a colisão iminente, ter abrandado. Mas não. Continuei a acelerar. Ele buzinou e olhou para mim, num misto de raiva e súplica, com as mãos fixas no volante. Mostrei-lhe novamente o dedo do meio. 

Ouvi a buzinadela prolongada do camião, a chiadeira dos travões e um tremendo estrondo. Pelo espelho retrovisor, vi o Toyota a capotar, o tejadilho espalmado, pedaços de borracha e de chapa a soltarem-se no ar. Sobre o local, ficou a pairar uma enorme nuvem de fumo. 

Desacelerei, respirei fundo, segui para casa calmamente. Pouco depois, comecei a ouvir as sirenes das ambulâncias. 

Foi grave. Li no jornal do dia seguinte que o condutor do camião saiu ileso, mas que o miúdo do Toyota entrou em paragem cardiorrespiratória, tendo morrido no desencarceramento. Tinha dezanove anos. Filho único, vivia com os pais. Ia visitar a namorada. Na verdade, até calhou bem ser um camião TIR. Imaginem se fosse um veículo ligeiro com crianças? Tinham sido vítimas inocentes de mais um condutor psicopata. 


 

SOBRE O AUTOR

Paulo Barros

Escreve essencialmente para si próprio, sente muita timidez em divulgar textos. Não divulga nas redes sociais o que escreve, embora as consulte e tenha as suas próprias plataformas (onde vai colocando umas coisitas a medo, quase sem ninguém saber). As redes sociais são para ele uma tremenda confusão e amálgama, onde todos gostam de se mostrar e falar de si, estando pouco interessados e atentos ao «outro».

É professor do grupo 230 em Vila Nova de Gaia.

Nasceu no ano anterior à revolução dos cravos.