Em Nome do Pai
De Lewis Medeiros Custódio
— Irmãos, agradeço a prontidão com que acederam à minha chamada — disse o abade Elias, e todos acenámos em concordância. — Sabem bem por que aqui estão. — Os outros monges repetiram o gesto.
Eu não fazia ideia. Estava demasiado ensonado quando o estimado e barulhento irmão Sampaio irrompeu pela minha porta. Lembro-me de que ele muito falou, mas pouco retive do que ele disse. Só percebi que me tinha de reunir com os outros monges imediatamente. Já não havia consideração pelas horas de dormir.
— Irmãos — disse de novo o abade —, há um grande mal entre nós! — Será que tinham descoberto que eu andava a roubar o vinho da missa? Mas se metade de nós fazia isso… — Temos um jovem possuído pelo demónio entre nós! — Olhei em volta, à procura de alguma cara intrusa. — A esposa deste jovem depositou a sua confiança em nós, pelo que iremos lutar contra Satanás esta noite!
Aplaudimos em alegria. Não é todos os dias que se pode presenciar a vitória do Homem sobre o Maligno.
— Como sabem, tenho estado doente desde a semana passada — continuou o abade, embora eu nunca o tivesse visto minimamente enfermo — e as nossas regras exigem que o exorcismo seja conduzido por alguém com saúde, física e moral, intacta. Assim, será o nosso estimado prior a fazer o exorcismo. Todos aplaudiram. Eu também aplaudiria, mas o prior era eu.
Senti, subitamente, o peso da responsabilidade. Como não o sentia há anos. Era por isso, aliás, que me tinha tornado monge. Se quisesse responsabilidade, ia para padre. E esta noite queriam pôr-me a lutar contra o Anticristo. Confesso que rezei por um espirro.
Um dos monges encarregou-se de me trazer o Rituale Romanum, que guardávamos religiosamente na biblioteca. Tirei-lhe a enorme camada de pó da lombada e abri-o na última parte — «O Exorcismo». Enquanto procurava pelo «De Exorcizandis Obsessis a Daemonio», outro irmão entregou-me um documento assinado pelo Bispo. Li-o cuidadosamente.
O exorcismo estava autorizado pela sacrossanta Igreja, na qual me tinha refugiado da azáfama do mundo. Senti uma mudança brusca. Era uma pessoa razoavelmente divertida e álacre, e alegremente aplaudiria o estimado abade na luta contra o Diabo… mas ser eu a exorcizar?!
Fechei o livro. Não me sentia alegre. Não me sentia seguro de mim. E agora tinha de confessar-me. Fazia-o todas as semanas, claro, mas… deixo certos pormenores de fora. Os álbuns do Ozzy Osbourne e do Marilyn Manson que ouço em segredo, o vinho da missa que roubo amiúde… ou o facto de a irmã Maria, de apenas 19 anos, me fazer desviar o olhar e ter pensamentos impuros. Contar isto a outra pessoa… sim, é o motivo da confissão, mas nunca sentira tanta vergonha ao confessar-me.
Terminado o suplício, não me senti melhor. Talvez em relação à música e ao vinho, mas disseram-me para me abster de pensar na irmã Maria; o que só me fazia pensar mais nela.
Voltei a pegar no Rituale Romanum. Não o abri. Pensei apenas em tudo o que estava a acontecer. Talvez o rapaz fosse só mais um maluco a pensar que estava possuído. Sim! Podia perfeitamente ser isso, apesar da autorização do Bispo. Era só alguém com problemas mentais! O Diabo? Que disparate!
Levantei-me da cadeira cheio de coragem e confiança, apenas para ver os três crucifixos na sala do confessionário a virarem-se ao mesmo tempo, como soldados malignos, apontando para o chão. Sentei-me pálido e em apneia. Quase vomitei o coração quando bateram à porta.
— Está tudo pronto, irmão. Eu vou ser a testemunha — disse o irmão Jorge, com ar pesado.
Levantei-me e descemos até à cave. Os monges oravam. Outros até aplaudiam. O meu coração contraía-se. Entrámos na cela onde estava o jovem e a sua esposa, acompanhados do abade. O rapaz estava acorrentado a uma cadeira.
— Então és um demónio. Ou dizes ser. Por que é que eu hei-de perder o meu tempo contigo? — perguntei, estupidamente, arrependendo-me logo em seguida.
Os crucifixos da cela viraram-se para o chão, tal como os do confessionário. De uma das paredes, começou a brotar sangue. O sangue formou letras. As letras formaram uma frase. Fili, cur Mariam non concumbis?
O abade, que ainda há pouco me tinha confessado, olhou para mim petrificado, traduzindo lentamente: «Filho… porque não dormes… com a Maria?». Só agora o abade acreditava que estava efectivamente na presença do demónio.
— Abade, leve a esposa deste jovem lá para fora — pediu o irmão Jorge, benzendo-se. Iniciei o exorcismo.
A estola roxa e a sobrepeliz branca cobriam o medo, mas não o meu tremor. No entanto, já que o monstro fazia questão de mostrar o seu latim, atirei-lhe com todas as preces que o livro mandava. O irmão Jorge encarregou-se da água benta; ou o Diabo fugia ou se afogava.
A cada frase minha, a besta respondia com Fili peccator, veni!» — «Vem, filho pecador» — e levava com mais água benta.
Por fim, rebentou uma das correntes e pôs-me a mão no ombro. De imediato, a minha mente fugiu para um pecado antigo que nunca confessara: o meu tempo com uma noviça que conheci noutro mosteiro quando era mais novo. Quase a tinha esquecido. O irmão Jorge puxou-me das garras da Besta.
— O demónio foi-se! — gritei.
— Mas ele revelou o seu nome? — perguntou Jorge.
— Acabou! — insisti.
No dia seguinte, bebi o vinho sem ser às escondidas. Ouvi a música em bom som e até encomendei mais um CD. Não olhei para a irmã Maria. Na verdade, ninguém sabia onde ela estava. Procuraram-na, mas nem os papéis de admissão tinham sido encontrados, como se ela nunca cá tivesse estado. Não importa — a irmã Patrícia é muito mais nova e não é nada de se deitar fora. Também levei os outros irmãos à varanda para lhes ensinar de onde podiam ver as noviças a nadar e a tomar banho.
Não sei por que razão o Diabo decidiu atormentar aquele casal. O que sei é que hoje me sinto muito mais liberto.
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945
SOBRE O AUTOR
Lewis Medeiros Custódio
Nascido na paradisíaca ilha de São Miguel, nos Açores, foi aluno do Conservatório de Ponta Delgada, onde aprendeu piano. É licenciado em Línguas Modernas e mestre em Ensino pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, além de ser judoca, guitarrista e fotógrafo. Desde cedo, desenvolveu uma paixão pelo terror e pelo macabro, mergulhando nas obras de Edgar Allan Poe, H. P. Lovecraft e Stephen King. A emoção visceral desse universo tornou-se uma obsessão que contagiou todos os meios que consome — da literatura ao cinema, da música aos jogos.







