Familiar
de Inês Garcia Morais
Não conseguia acordar.
Horas de reuniões, sorrisos automáticos e mentiras coletivas, de um coma profundo, um pesadelo lúcido embora nunca dormisse. Sentia o sangue a latejar à noite, e um nevoeiro denso durante o dia.
Foi o desespero que me fez voltar. A alma a precisar do familiar; de ver, ouvir, tocar e respirar, tudo o que fazia de mim eu.
O cheiro a folhas molhadas, o ranger das janelas, o bolor nas paredes que se infiltrava nos pulmões. Mas havia sol quente na entrada, o fogão de décadas que nunca falhava, pronto para fazer chocolate quente como em nenhum outro sítio. Havia isso.
Subi as escadas do sótão, onde abraçara nódoas negras e abafara gritos. O rosa nas paredes era agora bege. A madeira das molduras tinha apodrecido.
Na ânsia de querer sentir outra vez, o sono veio. Deitei-me na colcha fria e húmida, e estava de volta a mim.
Os olhos pousaram preguiçosamente na cómoda em frente. Dezenas de criaturas familiares olhavam-me de volta, sem cor.
Num silêncio inerte e árido, o sono ganhava e eu cedia — como quando se acorda; como quando se morre. Assim, aos meus olhos cansados, ela pareceu-me igual a todos os dias, àqueles que a minha memória sem paz trancava. Era uma figura esquecida, passada de mão em mão, sem nenhum de nós saber de onde vinha. Os seus olhos de cerâmica fixavam-se em mim, gastos — e ainda assim, estranhamente, destacados dos restantes.
Ao fechar as pálpebras uma terceira vez, ela falou:
— Bem-vinda a casa.
Os meus olhos gelaram. A minha garganta fechou.
— Dorme. Eu faço-te companhia.
SOBRE A AUTORA
Inês Garcia Morais
Gryffindor nascida a agosto de 1986.
Licenciada em Estudos Anglo-Americanos (2009), com pós-graduações em Tradução e Arte e Educação. Fascinada por Poe e Gaiman; Burton, Spielberg e Aronofsky; cidadã de Gotham, Hogsmeade e Rivendell; fã de Zimmer e música dos anos 90.
Com dez anos de experiência em ensino, trabalha agora em integração e well-being.
Foi escrevendo sobre filmes e séries, e completando diversas formações
em Escrita Criativa.
Hoje, o seu propósito passa por explorar e partilhar a terapia existente nas histórias que amamos.
Acima de tudo, acredita que transformar emoções em vida contada é a mais bela das homenagens.