Flores. Livro. Vela.
de Bárbara R. Rafael
— Voltou a não trocar a água às flores – murmurei baixinho, enquanto o cheiro fétido me invadia as narinas.
Já tinha passado um mês desde que o centro social me deixou encarregada da Dona Fausta. Era a única utente que nunca saía do seu forte de pedra, e a grande maioria das assistentes desistia na primeira semana, suplicando, lavadas em lágrimas, para que não tivessem de lá voltar.
Eu, por algum motivo, ia-me aguentando. A velha mal me dirigia a palavra, mas era uma pessoa trabalhosa. Daquelas que não se importava de viver na imundice. De todas as casas onde ia fazer a ronda, a dela era a que mais me incomodava. Parecia um mausoléu, frio e claustrofóbico. Um lugar onde os filhos a haviam depositado, enquanto usufruíam do seu dinheiro.
A Dona Fausta, enrugada e soturna, tinha demência. Nas raras ocasiões em que verbalizava algo, fazia-o em estranhos conjuntos de três palavras:
Gritos, sapato, cordel.
Dedos, tesoura, risos.
Silêncio, olhos, garfo.
Nunca percebi o que queria dizer com aquilo. Efetivamente, ia encontrando alguns dos objetos mencionados pela casa: uns sapatos enlameados e carcomidos com os cordões em falta; uma tesoura grande, daquelas de poda, com manchas avermelhadas de ferrugem. Ou daquela vez que estava o faqueiro revirado do avesso, só com um velho garfo de prata mal polido no meio da mesa.
No início, perguntava-lhe o que raio andava a fazer para desarrumar tudo, mas a Dona Fausta balbuciava as suas três palavras e repetia-as em oração. Abraçava os braços e repetia tudo vezes e vezes sem conta, numa compulsão que eu não entendia. Com o passar do tempo, desisti de me questionar; limitava-me a fazer o meu trabalho. Pegava nos objetos, tentava limpar e arrumar um pouco. Depois, só tinha de lhe deixar as refeições preparadas no centro social e garantir que ainda respirava.
Ao subir as escadas de mármore, arrepiei-me por momentos. Apesar de pouco falar, a Dona Fausta aparecia assim que me sentia entrar em casa. Tinha uma forma fantasmagórica de surgir sem que me apercebesse. Naquele dia, porém, não veio logo.
O silêncio era tão espesso que apenas ouvia a minha respiração, tremida e ofegante. Pela primeira vez, desejei ouvi-la sibilar um dos seus conjuntos de três palavras.
A porta do quarto estava entreaberta. A velha devia estar deitada. Melhor assim, pensei.
— Dona Fausta, trago a sua sopinha. — Estaquei ao sentir um cheiro estranho vindo do interior do aposento. — Que cheiro é este?
As janelas estavam abertas, talvez numa tentativa de arejar o espaço. As cortinas sacudiam-se violentamente na corrente de ar, espalhando vários papéis pelo quarto.
— Flores… — disse a mulher numa voz arrastada.
— Pois, não trocou a água. Mas não é a isso que me cheira.
— Livro… — Um dedo magro e macilento apontava na direção de um livro, caído junto à cómoda de ébano.
Avancei devagar para o apanhar do chão. Dobrei-me com cuidado e reparei na camada brilhante que cobria o chão à minha volta. Passei o dedo nela e levei-o ao nariz.
Gasolina.
Seguiu-se o som familiar de um fósforo a ser utilizado, acompanhado de um vago aroma a queimado. Olhei em frente. A Dona Fausta aproximara-se e sorria com uma expressão vítrea, exibindo a vela que ardia na mão direita. Antes que eu pudesse reagir, sussurrou com satisfação:
— Vela.
*
Aquele trabalho como assistente social era uma bênção. Tinha acabado de me mudar para a vila e precisava de pagar as contas. Só não percebia o porquê de a diretora insistir em ficar comigo ao telefone enquanto eu fazia a ronda na casa da Dona Fausta. A senhora falava de forma estranha, só três palavras de cada vez, mas, fora isso, não me incomodava. Hoje, até me deixou um chocolatinho na mesa, um xaile à entrada, no caso de ter frio, e uma caneta se fosse preciso, para fazer a lista de compras.
SOBRE A AUTORA
Bárbara R. Rafael
Nasceu em 1994, na margem sul do Tejo. Apaixonada por estórias desde pequena, foi pela mãe, professora, que desde cedo foi cativada para a escrita.
Incentivada a participar nos concursos literários da escola, foi ganhando o gosto pelas letras e fez-se sempre acompanhar pelos livros nas diversas fases da vida.
Seguiu turismo na licenciatura e exerceu na área durante alguns anos, até que a pandemia a fez mudar de rumo e abraçar o mundo das empresas tech.
Hoje em dia, encontra-se em processo de escrita para aquele que espera ser o seu primeiro livro, publicado no género do fantástico.