Floresta Exangue
de Leonor Hungria
Do galho arrancado, jorra o sangue em golfadas. Os golpes abrem em carne a casca ressequida e espinhosa da árvore, desabrolhando os lamentos da sombra nela aprisionada. Estremecendo no deleite da vianda, a criatura rapace mastiga demoradamente. Engole, estende as asas e afunda as garras no tronco moribundo onde se empoleirou.
— Por favor, pára. — A voz sumida escorre das feridas e paira no ar por instantes.
Surda ao queixume, a abominável entidade continua a dilacerar a madeira enegrecida, arrancando pedaços sangrantes da casca e do tecido mole e ingerindo-os devagar, com volúpia.
— Piedade. Por favor.
A monstruosidade soergue-se, impassível, com o rosto e os peitos, de mulher, tingidos pela seiva escura da vítima. Toma o bosque, suspenso em noite eterna, no olhar. Na radiância fraca que emana das árvores estéreis e sangradas, distingue as formas das suas semelhantes. Asas, garras, dentes. Punindo, torturando, despedaçando. Os lamentos dolorosos dos condenados — aqueles que atentaram contra si mesmos — percutem o véu do ar bafiento, pesado do odor a carne e a sangue. O clamor, infindo, extravasa o anel e inunda os contíguos, reverberando em todo o círculo e esmorecendo antes de alcançar os tectos abobadados, algures na escuridão inescrutável.
Um ruflar de asas próximo desperta a criatura do transe. A sua irmã agita-se e enterra profundamente as unhas recurvas no ramo despido.
— Por favor. Por favor. Não me magoem mais.
As duas harpias entreolham-se e deformam os lábios num meio-sorriso. Não conhecem misericórdia, não lhes cabe o perdão. A elas pertence apenas o suplício. Mergulham novamente as faces nas chagas hiantes. O sangue corre.
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945
SOBRE A AUTORA
Leonor Hungria
Leonor Hungria nasceu em Lisboa, no dia 6 de novembro de 1977, arruinando assim os planos da sua mãe de ver o último episódio da telenovela Gabriela. Foi fonte de mais alguns aborrecimentos durante a infância: era habitual os pais encontrarem-na a desenhar nas paredes da casa, especialmente debaixo do lavatório, onde os gatafunhos passariam despercebidos. Ou assim ela o pensava.
A sua paixão pelo desenho, pelos livros e pela escrita cresceu na adolescência, o que fez dela uma «croma» sem remédio.
O seu corpus de trabalho abrange os géneros neovitoriano, gótico e horror, sempre com algum humor. Negro, claro.