Funcionários do Mês
De Inês Videira
Ali, o tempo não passava, mas pelo menos havia silêncio, depois da sugestão que o Bedum dera aos chefes de arrancar as cordas vocais aos que iam chegando. Os gritos resultantes das torturas infligidas costumavam ser um castigo maior para os pobres demónios do que para os vários atormentados.
Mas alguém reconhecia os talentos do Bedum? Não. Mantinha-se há séculos no mesmo lugar, agarrado aos grelhadores. Abrir os ferros, abrir as caixas torácicas, alinhá-las, fechar os ferros. E rodar. Rodar eternamente.
Esta atividade tinha-o deixado com o lado direito muito maior e mais largo do que o esquerdo, com o braço extremamente musculado e cheio de veias, ao passo que o outro era pouco mais firme do que um esparguete cozido. Chegou a levar isto à consideração dos Recursos Desumanos, esperando obter uma indemnização, mas o responsável descartou a desproporção como sendo apenas falta de namorada.
Ninguém valorizava o Bedum.
Ocasionalmente, fazia uma pausa, e visitava o seu amigo, Bodega, um ser que arrastava os pés e deixava sempre um rasto de gosma. Dada esta característica desagradável, e depois de vários acidentes de trabalho junto aos grelhadores, tinham realocado Bodega a uma tarefa que lhe permitisse estar sentado: só tinha de puxar uma alavanca para que centenas de danados, pendurados pelos pés, descessem a um lago e ficassem de cabeça submersa. Contava até cem, levantava-os e repetia tudo de novo.
Naquele dia, porém, Bedum viu a cadeira de Bodega vazia, e os danados submersos há bem mais tempo do que deviam. Assim, seguiu o rasto de ranho reluzente até encontrar o amigo, escondido atrás de uma pedra.
— O que é que estás a fazer aqui?
— Chiu!
Percebeu então que este estava à escuta de uma conversa entre Botulínio e Bubão, dois demónios superiores.
— Porquê europeus? Os africanos e os asiáticos morrem aos montes. Para que é que querem os europeus? — indignava-se Botulínio.
— Eu sei lá! Manias do Belzebu — respondeu Bubão.
— Mas o que é que ele te disse mesmo?
— «Quero que morram tantos, que os sobreviventes percam a fé.»
Bedum e Bodega entreolharam-se. Não precisaram de trocar palavras para saberem o que cada um pensava: era a oportunidade de subir na hierarquia demoníaca.
Sem traçar um plano, decidiram visitar o mundo dos vivos. Sendo de baixo estatuto, não podiam possuir humanos, pelo que teriam de ir em forma de animal.
— Eu vou de rato, tu vais de pulga.
— Não, da última vez fui eu a pulga! Quero ser o rato.
— Não podes ser o rato, porque largas gosma!
Depois de um rápido «pedra-papel-tesoura» para determinar de forma justa quem seria o quê, subiram ao mundo dos vivos para arranjar uma forma de matar europeus, tantos que os seus chefes ficassem impressionados e os promovessem.
Acontece que os caminhos entre o Inferno e a região superior são labirínticos, e os amigos demónios enganaram-se na terceira curva à esquerda. Em vez de chegarem a Portugal, como tinham estimado, viram-se na China.
Foram dias passados a correr de um lado para o outro, sem arranjar uma solução. Cansados de fugir de gatos, corvos e vassouradas, entraram à socapa num navio prestes a zarpar, repleto de guerreiros mongóis, brutos e malcheirosos.
A temperatura em alto-mar não é, contudo, a mesma de que em terra, e o corpo de roedor que Bedum assumira não demorou a estranhar a mudança, começando a espirrar descontroladamente. Nada parecia correr bem.
Passados uns dias de viagem, Bedum e Bodega começaram a notar a preocupação do comandante: a maioria da tripulação tinha adoecido com tumores fétidos no corpo, morrendo um por um. Àquele ritmo, quando chegasse à cidade europeia que queria cercar, não restaria ninguém vivo.
— Idiota! Foste tu! Espirraste e espalhaste um vapor infernal qualquer. Como é que eles agora vão matar europeus? — zangou-se Bodega.
— E como é que tu sabes que foram os meus espirros e não o teu ranho? Tenho o pelo todo languinhento!
Depois, mais uma vez, tiveram a mesma ideia em simultâneo.
Durante a noite, Bedum correu até à beira da cama do comandante, e Bodega saltitou pelos lençóis até ao rosto, alojou-se nos pelos da orelha do homem e sussurrou:
— Se os teus homens pegaram a doença uns aos outros mesmo depois de morrerem, porque não atirá-los para dentro da cidade?
No dia seguinte, aportaram. O comandante mandou os poucos sobreviventes carregarem as catapultas com os cadáveres dos seus companheiros. À vez, os corpos foram caindo dentro das muralhas da cidade.
***
Bedum e Bodega corriam atrás do chefe.
— Não é justo! Fomos nós que tivemos o trabalho! E a ideia!
— Calem-se! Não passam de incompetentes! Olhem para isto!
Bubão apresentava aos subordinados o resultado desastroso de terem negligenciado o trabalho para se deslocarem ao mundo dos vivos: dezenas de danados irreconhecíveis e com os pulmões carbonizados; outros tantos com a cabeça inchada, disforme depois de terem passado demasiado tempo dentro de água.
Bedum cruzou os braços, amuado, e falou para Bodega entredentes:
— Ficar com os créditos já é mau, mas chamar à operação «peste bubónica»? Como se fosse ele o criador? É muita humilhação.
Ao fundo, um outro demónio aparecia, com as três bocas a sorrir.
— Parabéns, Bubão! Já se fala em projeções de 200 milhões de mortes. És um exemplo para todos os demónios. Uma inspiração!
— Obrigado, Antrácio! Se trabalhares no duro, também pode ser que venhas a ter o teu momento.
SOBRE O AUTOR
Inês Videira
Inês vive rodeada de livros desde que aprendeu a ler. Reza a lenda que, quando acabou o livro de Português do 1.º ano, desatou a chorar, porque não tinha mais livros — algo que a mãe resolveu prontamente, com um bonito volume dos Contos de Grimm. Uma coisa levou à outra, então, aqui estamos.
Experimentou escrever em vários géneros ao longo do tempo, e parece que aterrou no fantástico, ocasionalmente escurecendo-o o suficiente para chegar ao terror.