Gosto de te Ver Dormir
de Ana Rute Simões
Nunca foi fácil. Fingir, digo. Acredito que não deve ser para ninguém.
Manter fechado o nosso verdadeiro eu. Fingir todos os dias ser algo que não somos. Abafar. Controlar. Minimizar os desejos. Vestir uma pele que não é nossa. Todos os dias. Hora após hora. Encontrando a liberdade apenas nos sonhos. Livre. Livre. Para ser quem sou. Deixar à solta a vontade, deixar correr livremente o meu ser. Livrar-me das correntes do que é certo. Do que é normal. Ser inteiramente eu. Nem que por um segundo apenas.
As vozes aumentam. Tento asfixiá-las. Sou um bom menino. Repito. Sou um bom menino. Ignoro os sons. Os pesadelos. Ponho a máscara. Uso-a diligentemente. Ninguém repara. Ninguém sabe. Nem sequer sonham. Que existe outro. À espera. Impaciente.
Fico muito quieto enquanto me dás as boas noites. Enquanto me sussurras:
— Gosto de te ver dormir.
Sou um bom menino, repito.
Até quando?
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945
SOBRE A AUTORA
Ana Rute Simões
Ana Rute Simões, mãe de três pequenos heróis. Não consegue (e não quer) imaginar um mundo sem livros. Sem histórias. Produtora das curtas-metragens TU, Espelho Meu, A Escritora, O Intruso, Piquenique e Gosto de te Ver Dormir (onde escreveu igualmente o argumento). Autora de Quando o Mundo Perdeu a Cor e Contos Mirabolantes Sobre Crianças Fantásticas. Colaborou na Antologia Minimalista em 2024, com o conto «Um Dia Contigo».