Heme
De Nuno Amaral Jorge
Ainda tenho um pedaço no frigorífico.
E a carta na gaveta. Já a li cinquenta vezes. Irreversível. Estou branca como um lençol, mas não saio de casa há mais de um ano. Janelas quase sempre fechadas, especialmente no Verão, mas consigo ir lá fora nos dias em que chove muito e o céu está plúmbeo. Muito creme e óculos escuros, e consigo andar pela rua, respirar ar sem paredes à volta. O médico não entende porquê, mas diz que ao menos tenho alguma sorte. Eu sei porquê.
O médico está enganado. Na verdade, ele e eu fomos enganados, mas por coisas diferentes. Quando procurei por tudo e mais alguma coisa, desesperada por estar a meses de me tornar uma atracção de feira, dei de caras com o Luís. Simpatizei com ele, e ainda tinha libido. Pelo menos, alguma. O Luís era giro e percebia de computadores. Percebia muito. Navegava na darkweb e tudo. Ensinou-me muitas coisas, especialmente nos intervalos entre o sexo desenfreado, no qual ele se divertia mais do que eu, embora nessa altura eu ainda conseguisse desfrutar de alguma coisa. Como já disse, parece que sou bonita, e ele reagia como tal.
Após o primeiro diagnóstico, quando entrei em pânico, consegui navegar na darkweb com o que o Luís me tinha ensinado. Arranjou tudo de forma a deixar-me protegida, ou assim o disse, com VPN e o diabo a quatro. Não vou dizer tudo o que vi. Preferia até nem o ter visto, sinceramente. Até que encontrei o Calisto. Eduardo Calisto, doente de porfiria aguda. E muito doente da cabeça. Tinha uma página onde expunha os horrores que a doença lhe causava ao corpo, nomeadamente à pele e aos dentes. Os detalhes mostrados variavam entre o grotesco e o insuportável.
Tentei interagir com ele quase imediatamente. Dado o seu estado, não ia ali para encontrar dicas de preservação; era a maneira como ele lidava com tudo que me fascinava. Como é que o medo e a limitação não o paralisavam? Que raiva era aquela que o levava a expor-se nas catacumbas mais temíveis da era moderna?
Começámos a conversar. Ele era — e é — assustador. Lidar com a insanidade funcional é uma experiência singular. Eu sei que ele é completamente doido, mas, ao mesmo tempo, consegue conversar, tem discurso e fluidez mental.
Recordo uma conversa em especial na qual ele me contou, e me mostrou detalhadamente, os danos que a doença infligira a uma secção da pele junto à clavícula. Mostrou-me, nas fases mais intensas da insuficiência de heme no sangue, como a sua pele, quase toda branca como leite, se escurecia nas lesões, abrindo regos e descascando, à semelhança de uma cobra a libertar-se da pele morta.
Embora padecesse de dores mais ou menos constantes, o Eduardo conseguia estar bastante activo. Trabalhava em programação, o que lhe permitia fazer quase tudo a partir de casa, só saindo quando os dias acabavam, de preferência em noites de lua nova, já que qualquer tipo de claridade era difícil de suportar. Eduardo vivia como um recluso, com a sua página pública de horrores.
Eu estava impressionada, mas também fascinada com tudo aquilo. A conversa prolongou-se durante meses. Comecei a sofrer com dores crónicas, e a minha urina passou a assemelhar-se a groselha. Além disso, lá estava o medo, ao longe, a aproximar-se lentamente como um duelista do velho Oeste, trazendo ao meu quotidiano a iminência de uma morte prematura.
Com o passar do tempo, o Eduardo foi-me mostrando coisas cada vez mais estranhas, até que, mesmo dentro do estranho, algo curioso começou a ocorrer. Estávamos a ter uma conversa sobre ele — mais precisamente, quando tinha sido a última vez que tinha tido contacto com alguém, sexual ou de outra natureza. Interessava-me saber como é que ele conseguia combater o isolamento, como era passar a não ter ninguém que me tocasse de maneira alguma. Como é que ele reagia à repugnância presencial, quando se sujeitava a ela, o que não ocorria há muito tempo.
Enquanto falávamos sobre isso, o Eduardo agarrava em pedaços de carne fresca e embebida em sangue. E comia. O sangue vertia-lhe pelo queixo a cada dentada, mas ele recolhia tudo, com a língua ou com os dedos. Nem uma gota escapava. Ao princípio, deixei a coisa passar, como se nem tivesse reparado; no entanto, quando ele repetiu a situação no dia seguinte, tive de perguntar.
A resposta dele foi brutalmente concreta. Embora fizesse os tratamentos disponíveis, havia uma possibilidade de repor heme através da ingestão de carne plena de sangue. Hemoglobina por ingestão directa. Incomodativamente simples. Ao longo dessa semana, reparei que o Eduardo tinha menos crises e estava com muito melhor aspecto.
O resto, a partir daí… é história.
O Eduardo disse-me que o efeito melhorava com um certo tipo de carne. Recordemos que ele navegava na darkweb — que conhecia pessoas e locais dos quais preferimos nem ouvir falar, que escolhemos pensar que nem sequer existem. Enviou-me assim a primeira encomenda. O conteúdo tinha chegado para uma semana de consumo. No final dessa semana, as dores no peito e as empolas cutâneas tinham diminuído.
Continuámos a falar. Ainda não nos encontrámos, mas fazemos várias videochamadas, isolados como dois náufragos com acesso à Internet. Sacudimos a solidão, nem que seja à custa da partilha de coisas menos bonitas ou aceitáveis. As nossas lesões e dores vão variando de intensidade e de efeitos visuais. Por vezes, ficam melhores; por vezes, bem piores, consistentes com as variações das doenças crónicas desta raridade.
Hoje em dia, já nos conhecemos melhor, e continuo a receber encomendas dele. E a comer. Até agora, ainda não me disse que carne é aquela. Mas eu também não pergunto.
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945
SOBRE O AUTOR
Nuno Amaral Jorge
Nuno Amaral Jorge nasceu em Lisboa, no ano de 1974. É jurista, fotógrafo amador e escritor freelance. É guionista de BD, publicou contos em várias antologias, dois romances e dois livros infantojuvenis. Destaca títulos como os romances As Três Mortes de Um Homem Banal e A Passagem, bem como o conto «Coelho Branco», publicado na antologia IN/SANIDADE, e com o qual ganhou Grande Prémio Adamastor de Ficção Fantástica em Conto – 2024.
Stephen King, Julian Barnes, Rosa Montero, Neil Gaiman e Alan Moore são algumas das suas referências.
Vive em Carnaxide com a sua companheira, os seus três gatos, e é um feroz defensor do maximalismo da liberdade de expressão, artística ou de qualquer outra tipologia.