Homem do Chapéu Preto
De Ana Simão Amaral
Trabalho como pedopsiquiatra há mais de vinte anos. Parece que ainda ouço a voz do meu pai a dizer-me que devia seguir esta área porque «dá dinheiro, e isso é o que importa!».
Nunca gostei particularmente de crianças, nem tenho filhos, mas, com o tempo, fui-me habituando a ajudá-las. Agora, posso dizer que até aprecio o meu trabalho.
Ao longo da minha carreira, já tratei crianças com as mais variadas perturbações mentais: ansiedade de separação, traumas indescritíveis, perturbações delirantes e comportamentais. Pensava que já tinha visto tudo. Pensava que nada me poderia abalar.
Estava enganado.
Numa manhã chuvosa, recebi um telefonema urgente da minha secretária: uma família estava desesperada para falar comigo. Assim que me passou a chamada, ouvi a voz trémula de uma mãe a implorar que atendesse o seu filho, Leonardo, naquele mesmo dia. Segundo ela, o menino via coisas — pessoas que não existem, explicou. Os professores estavam alarmados. O pai achava que o miúdo estava a perder o juízo.
A urgência na voz da mãe convenceu-me a abrir uma exceção e um espaço na minha agenda. Poucas horas depois, mãe e filho estavam no meu consultório.
Leonardo, de oito anos, era pequeno e magro, com olheiras tão profundas que parecia não dormir há dias. Não era hostil nem parecia confuso. Pelo contrário, apresentava-se surpreendentemente calmo. Havia uma maturidade obscura nos seus olhos, como se carregasse um fardo que mais ninguém compreendia.
— Leonardo, podes contar-me o que se está a passar? — perguntei, enquanto preparava o meu bloco de notas.
Ele hesitou, desviando o olhar para um canto do consultório, ocupado apenas por um candeeiro de chão.
— Ele está aqui — disse o menino, num sussurro.
A mãe mexeu-se desconfortavelmente na cadeira. Percebi que teria de avançar com cuidado.
— Quem é que está aqui, Leonardo? — Olhei para o canto que ele fixava.
O rapaz demorou a responder. Quando o fez, a voz saiu neutra, sem medo.
— O homem do chapéu preto.
Um arrepio percorreu-me as costas, mas mantive a compostura.
— Vês esse homem há muito tempo?
Leonardo não respondeu.
— Podes dizer-me o que é que ele faz? — insisti.
Leonardo inclinou a cabeça para o lado, suspirou e respondeu, agora olhando para o chão:
— Ele só fica a olhar. Mas, às vezes, sussurra coisas.
Fiz um esforço por não alterar a minha expressão ao olhar de volta para o rapaz. Não podia denunciar que, ao olhar para o canto, também eu vira o homem do chapéu preto.
Tinha o corpo magro, torto e curvado para a esquerda, como se os ossos estivessem prestes a romper-lhe pela pele. As costas formavam um arco antinatural, e os braços longos pendiam como galhos ressequidos. O rosto estava coberto por sombra, mas distinguiam-se cavidades negras onde os olhos deviam estar, além de uma boca larga, torcida, a mexer ligeiramente.
Fiz o melhor por prosseguir com a consulta e terminá-la. Leonardo, desde então, nunca mais voltou. A mãe ligou para o consultório a dizer que tinham decidido procurar outro especialista.
Mas ele ficou.
O homem do chapéu preto nunca se foi embora.
E, de há uns tempos para cá, começou a sussurrar.
SOBRE O AUTOR
Ana Simão Amaral
Ana Simão Amaral nasceu no Porto em 1993. Fascinada por literatura e pelo género de terror, assim como por filmes, séries e curtas-metragens, decidiu, em 2023, criar o canal de YouTube «Histórias de Terror PT», onde partilha conteúdos arrepiantes com o público. No entanto, só em outubro de 2024 deu início à sua jornada na escrita de histórias de terror, comprometendo-se a não mais abandonar a escrita.