Macha

de Ana Carolina Gomes

 

Cãibras mordiam-me as pernas, na recusa de as mexer para não incomodar a Macha. A cadela dormia profundamente. Um ouroborus fofinho e gordinho aos meus pés, enquanto trabalhava à secretária.

Há quanto tempo estaria assim? Horas? Perdia-me no bater entusiasmado das teclas. Teclado silencioso, com amortecimento XPTO e zero malefícios para as articulações dos dedos — que se negavam à suavidade e se impunham nas teclas, com a memória da força necessária para rodar a página numa máquina de escrever.

Teclado retroiluminado. Não importa. A visão estreitava-se em túnel através das lentes dos óculos, focada somente nas palavras-após-palavras na folha-ecrã em branco. O teclado bem podia estar no breu, as impressões digitais já se tinham moldado ao QWERTY.

Mas o chá acabou e insuflou a bexiga. Até a imaginação encontra limites no corpo.

Descalcei os chinelos de ovelha e rodei os tornozelos enferrujados. A informação dramática da nutri-PT-saudável, uma das vozes na minha cabeça, ecoava «idade metabólica de cinquenta anos».

Estiquei a perna e, com o pé descalço, senti o pelo suave da Macha. Esperava o elevar gentil da respiração profunda.

 

*

 

Acordei com o calor, mas com ideias. Nem sempre a inspiração das três da manhã sobrevive à aparente genialidade da insónia, mas que servisse para passar o tempo.

Liguei a ventoinha barata e barulhenta no máximo, sacudindo pó do verão passado, odores de um quarto mal arejado e pelos da Macha. Pelos que encontravam sempre forma de se abrigarem em refúgios secretos, desconhecidos do aspirador. O aspirador em que a Macha, quando pouco maior era do que uma mão, cavalgava por toda a casa.

Foi essa imagem que inspirou o livro de sci-fi que estava a escrever. E se a Macha fosse uma guerreira poderosa de uma espécie alienígena matriarcal e empoderada? E se o aspirador fosse uma nave com um avançado sistema de exploração interplanetária?

A inspiração não pede licença. Aparece, como um raio… e é melhor aproveitar. Nunca fui boa a convocá-la à força.

A Macha dormia no seu sítio. Debaixo da secretária. Com pelo a soltar-se como os filamentos soprados de um dente-de-leão.

Sentei-me, evitando tocar-lhe. Para não a acordar. Ou sem coragem para verificar se ainda respirava.

 

*

 

Acendi três paus de incenso. O quarto fedia. Nem o arejar quotidiano ajudava. Já tinha procurado — a medo — por bichos mortos, mas não os quis encontrar.

Com os sentidos enublados pela intensidade de odores, sentei-me na cadeira, desviando-a para a direita, afastando-me do canto esquerdo onde a Macha descansava. Por baixo do pelo, a barriga redonda movia-se. Não no ritmo do sono invejável que me habituara a contemplar nos últimos treze anos — mas movia-se.

Sorri para ela, com olhos húmidos que não querem ver.

Foco. No que importa.

Continuei a martelar o portátil e a contar a história.

 

*

 

Os olhos, agora permanentemente húmidos, até o ecrã focavam com dificuldade.

O quarto continuava a feder.

As folhas do calendário continuavam a virar.

Saí com esforço da cama. Dores em todo o lado. A idade metabólica de cinquenta anos era uma miragem. O sedentarismo dos últimos tempos teria acrescentando à conta pelo menos mais trinta anos.

O prazo para a entrega do manuscrito apertava — o prazo já com favores e cordelinhos puxados junto da editora.

Enrolada numa manta polar, íman de pelos, arrastei umas pantufas de ovelha para a secretária.

A Macha descansava os ossos desalinhados no sítio do costume. Do ouroborus, só um vestígio ténue.

Afundei-me na cadeira.

Escrevi a última frase. A heroína morria. Não havia outro final possível. Todas as palavras em todas as páginas apontavam para esse desfecho.

No último mês, tinha reescrito e apagado a última frase num loop interminável. Era tempo de aceitar o fim.

O ouroborus era eu.

Recusei-me a olhar para a Macha. Recusei-me a tocá-la.

Ela tocou-me. Um toque frio e seco de osso. Depois, uma mordidela tímida de um focinho fofo, mesmo que nu e vazio.

Pedia permissão. Dei-a.

Afundou os dentes na minha perna. Atravessando pele, tendões, músculo, raspando o osso; osso com osso.

Depois, puxou-me. Arrastou-me. Para o fundo. Onde nem o teclado retroiluminado me salvaria.


SOBRE A AUTORA

Ana Carolina Gomes

Ana Carolina Gomes é feita de palavras e política: antropóloga de formação, ativista a tempo inteiro e escritora como condição. Publicou o livro de poesia Tudo e Nada, entre outros textos em revistas e obras coletivas. É uma das criadoras da revista de ficção especulativa PACTO.

Gostas de ler? Aqui, encontras os melhores contos de terror! 

Privacy Preference Center