Mensagens do Interior

de Rita Santos

 

pesto alla genovese está delicioso. Ele consegue ouvir-me gemer enquanto desfaço a massa e os pinhões na boca. Não quero saber. Se continuar a receber mensagens positivas dele, não vão ser os únicos gemidos que vai ouvir esta noite. 

Já estava com saudades de um encontro a sério. Aos 35 e com várias relações falhadas, a minha intuição nunca me enganou quando me dizia que os homens são uns trastes. Só sofri quando escolhi ignorá-la. Mas gosto de pensar que tenho um bom primeiro crivo. Nas apps onde os conheço, tenho por hábito atirar com um «és um assassino ou violador?» que os desarma. Se derem uma resposta divertida ou enviarem um emoji brincalhão, continuo a dar conversa. Se começam a ficar defensivos ou agressivos, nem dou hipótese. É que levam logo com o botão de bloqueio. Este morenaço à minha frente foi o primeiro a responder-me desta forma simples, reveladora de sentido de humor e de empatia para com a condição das mulheres: «Não. E tu? É que um homem tem de ter muito cuidado neste mundo». 

Era exactamente o que esperava quando o vi no restaurante. Alto, corpo atlético, enfim…  Uma capa de revista. Quando se levantou para me cumprimentar, envolveu-me com os ombros largos e o cheiro a Cool Water

O lugar estava à pinha, mas ele fazia-me sentir como se o espaço fosse só nosso. Fazia perguntas. Esperava que eu respondesse. Parecia genuinamente interessado em ouvir as respostas. O olhar compenetrado no meu abafava o vai-e-vem dos empregados, as conversas dos outros convivas e da TV, esquecida num canal sensacionalista, onde comentadores de tudo e de coisa nenhuma discorriam sobre partes de corpos encontradas por todo o concelho de Sintra. Também era culto, e não escondia o seu lado geek. Lia manga e manhwa e conhecia filmes obscuros. Já tinha viajado a sua quota-parte e, de vez em quando, partilhava alguma trívia sobre outras culturas, sem exibição intelectual ou financeira. 

Perdi a linha de pensamento quando senti uma bola a criar-se no estômago. Oh! Agora, não! O encontro está a correr tão bem. O meu corpo começou a tremer ligeiramente, o que tentei disfarçar com gestos teatrais durante a conversa. Ele olhou para mim com ar de dúvida. A este não engano, pensei. Senti a bola a fazer pressão no topo do estômago e a trepar-me pelo esófago. Engoli o vómito. Olhei em volta e examinei os pontos de fuga. Pedi licença e levantei-me. Educada, mas assertiva. Não havia tempo a perder. 

Corri para a casa de banho das senhoras, pronta a vomitar para o colo de uma velhinha se necessário. Não ia estragar aquele encontro. Abri um dos compartimentos e forrei a sanita com papel higiénico. Sentei-me e esperei. Não era habitual haver grandes intervalos entre mensagens. Mais valia estar relaxada e preparada para as receber, sem o risco de haver alguma reacção esquisita do meu corpo. 

Uma vez, no secundário, durante um teste de Português, uma mensagem formou-se e saiu por uma espinha, bem no meio da minha testa. A professora deixou-me ir à casa de banho quando me viu em lágrimas, com uma montanha de pus branco a escorrer-me pela cara. 

Prometi-me a relativizar os conteúdos desta nova mensagem. Queria muito conhecer aquele homem de forma carnal. Estava preparada para ignorar que ele gostasse de wrestling ou que tivesse péssimo gosto em roupa interior. Só não aceitaria nada grave como ser secretamente casado. Ah! Aí vem ela. Senti um rasgo no ventre. Uma contracção. Foi uma dor tão intensa que quase me fez desfalecer. Então ia acontecer por baixo. Baixei as cuecas e os collants até às canelas para ter mais espaço de manobra. Puta que p… Gritei para dentro. Outra contracção, desta vez com expulsão. Cristais de suor cresceram nos meus poros e misturaram-se com as lágrimas. Da minha vagina, saiu uma ponta molhada de pele, sangue e restos do que vive no meu canal uterino. Fui puxando os conteúdos expelidos devagar, como um cordão umbilical sem placenta, como o desenrolar de uma fita métrica. Com os dedos, afastei a maior parte das impurezas para conseguir ler. Soltei um suspiro de derrota. Era a minha letra. Na mensagem, podia ler-se: «Ele é o esquartejador da linha. Foge!»

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945


SOBRE A AUTORA

Rita Santos

Rita Santos nasceu em Lisboa, no ano da passagem do cometa Halley, e jura que um dia ainda vai escrever sobre a data. Quis ser desenhadora, arquiteta, pintora e uma mão-cheia de coisas mais. E se calhar ainda quer ser isso tudo. Uma poliamorosa, portanto. Começou a escrever um livro aos 16 anos, que abandonou porque era uma porcaria. Depois de um bloqueio de uma década, reencontrou-se com a escrita e publicou o seu primeiro conto, «Vermelho Requinte», na Fábrica do Terror. Daí à publicação da sua primeira coleção de contos, 31 Faces de Terror, em nome próprio, foram alguns meses. O cinema, a música, a cultura pop e as oddities fazem parte do seu universo de referências. O romance? Até aos 100 anos, deve dar para escrever um.