Nas Entranhas da Serra
De R. H. Salsa
Estamos encolhidos no escuro. As portas estão trancadas e as janelas entaipadas, e peço silenciosamente à noite para que isto seja o suficiente. Os miúdos dormem, protegidos pela sua inocência de criança, mas consigo perceber que a minha mulher está acordada, e cada músculo do seu corpo tenso.
Os animais no estábulo lotado não se mexem, salvo pelo arrastar de pés ansioso. Nunca estiveram tão silenciosos. Saberão que a sua vida está em risco? Conseguirão senti-lo? Será esta a noite em que a criatura virá rondar a nossa porta, faminta, insaciável, atraída pelo calor da nossa carne?
Há três noites, tinha despertado sedenta, e a quinta ao final da rua foi vítima do seu desejo. De manhã, encontraram as portas do estábulo despedaçadas, e as pesadas dobradiças em ferro bruto, retorcidas, atiradas para um canto. O interior fedia a morte.
Não precisei de esperar pela luz do dia para perceber o que tinha acontecido. Os gritos aterrorizados das vacas tinham-me acordado, arrancando-me da cama com os membros dormentes e o coração na boca. Não sabia que as vacas conseguiam gritar…
Teremos feito o suficiente para acalmá-la desta vez? Estaremos seguros por mais uma noite?
Sinto que foi noutra vida que eu e o meu irmão, nas pontas dos pés, espreitávamos para o fundo do poço, procurando alguma verdade nas velhas histórias que ouvíamos repetidas vezes. Diziam que os poços eram miradouros; janelas secretas para o que habitava as entranhas da serra. Passávamos horas a olhar para a luz trémula na água escura lá em baixo, esperando o mais leve vislumbre de um pedaço de corpo sinuoso e deformado a quebrar a superfície.
Agora, é estranho pensar que houve uma altura em que olhávamos para isto como um jogo, como se tudo não passasse de um dos muitos contos que enfeitavam as nossas vidas.
Esse mesmo poço está hoje envenenado. A água, outrora fria e cristalina, deu lugar a um líquido negro, espesso e apodrecido, que se contorce quais larvas longas e finas como fios de cabelo. A antiga fonte de água pura de toda a aldeia está agora, também ela, contaminada pela criatura que por aqui vagueia. Talvez tenha crescido demasiado para o que quer que fosse a sua antiga casa…
Nunca a vi. No entanto, tenho a sua imagem gravada na mente. Penso nela a todos os instantes. Sinto o fardo da sua presença, como se o seu contorno me tivesse sido queimado nas retinas. Consigo distinguir a ganância insaciável nos seus olhos negros e profundos. No interior da terra, consigo reconhecer-lhe o corpo, já capaz de se torcer em várias voltas ao redor da colina com vista para a aldeia, talhando cicatrizes fundas no solo molhado.
Um gemido distante corta a quietude irregular, e provoca-me arrepios intensos que me percorrem o corpo. Será apenas o uivo do vento do mar, que sopra para o interior através do rio?
Pergunto-me por quanto tempo mais conseguiremos satisfazer o apetite da besta. Já levou tantos porcos e ovelhas, e as vacas estão demasiado aterrorizadas para produzir leite… Quanto tempo mais até que não sobre nada para ela comer? Quanto tempo até se virar para nós?
Procuro o calor e o conforto do corpo da minha mulher, mas é em vão. Esta pequena casa, que em tempos foi para mim sinónimo de segurança e paz, já não passa de um abrigo onde espero, acordado, que a noite passe. A minha própria vida foi, como tudo o resto, consumida pela criatura, e sei que, se ela não me levar, certamente me levará a loucura. E este cheiro…
Será o seu hálito fétido que sinto? Ou terá o seu corpo já contaminado o ar que circunda a aldeia?
Tenho a certeza de que ela está ali, do outro lado da parede. O seu corpo doente e grotesco, enrolado na escuridão; os seus muitos olhos negros, arregalados e odiosos, que nos fixam através das fendas na pedra.
Sim, ela está ali.
À espera. Preparada. Para a qualquer momento…
A qualquer momento…
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945
SOBRE O AUTOR
R. H. Salsa
Ricardo Salsa é escritor, músico e artista de rua.
Nascido em Barcelos, em 1991, estudou teatro no Porto, de onde partiu para o mundo.
Costuma dizer que já viveu muitas vidas, mas que sempre escreveu em todas elas.