No Meio da Ferida

de Cláudia Passarinho

 

No silêncio do apartamento, à janela, Marta continuava a observar a vida lá fora.

Pessoas apressadas para o trabalho, o chiar dos travões dos autocarros, crianças de mochila às costas, arrastadas pelas mãos finas das mães. Foi esta nesga de memória que se cravou na ferida: os carinhos que viveu com a mãe antes de esta falecer. 

Tinham passado momentos atrozes, subjugadas à violência do pai. Até decidirem fugir. Maria, a mãe, cortou o longo cabelo, tendo Marta pintado o dela, sem mágoa pela mancha loira que agora via no espelho. Marcharam, assim, unidas pela urgência da fuga e da salvação. 

Habitavam um pequeno apartamento, a 250 quilómetros do pai e marido abusador. Foram precisos vários meses até que nenhuma delas acordasse a meio da noite, com a respiração suspensa, antes de golfarem o ar de alívio por estarem em paz, livres do monstro. Marta, porém, sentia existir uma ferida aberta, uma necrose de memórias. E desconhecia que a paz também pode ser avassaladora. A mãe morrera, entretanto, e Marta, insensatamente, procurava apagar o pensamento da morte. Ciente de que a amnésia é considerada normal quando se está em choque, experimentava pequenos flashes que lhe mostravam gritos, objetos partidos, pedidos de socorro submersos em água. 

Os pássaros que se abeiravam no parapeito respeitavam-lhe o espaço e o luto. Piavam baixinho, permanecendo por pequenas frações junto dela, antes de largarem a voar para outro beiral qualquer. Foi enquanto observava um rouxinol em retirada que ouviu alguém a abrir a porta. Estática com a surpresa, permaneceu escondida atrás da cortina. 

— Tem sido difícil agendar visitas ao imóvel, mas penso que este cumpre todos os requisitos que pediu na agência. Por favor, entre. Uma vista maravilhosa para a cidade, uma sala com claridade suficiente para o senhor trabalhar, uma construção que há muito já não se vê.

— E tem a certeza de que morreram aqui duas mulheres?

— Sim. Absoluta. Mãe e filha, coitadas. A mãe foi afogada na banheira.

— E a filha?

— Pois, essa ainda foi pior. A besta do pai enfiou-lhe um machado pela cabeça adentro.


SOBRE A AUTORA

Cláudia Passarinho

Cláudia Passarinho nasce no ano de 1980, em Lisboa. É a quarta geração a residir numa vila lisboeta por onde tantos escritores já passaram. Licenciou-se em Desenvolvimento Comunitário e Saúde Mental pelo Instituto Superior de Psicologia Aplicada em 2004, tendo posteriormente completado uma pós-graduação em Gestão de Recursos Humanos. É casada e mãe de dois filhos. Da sua família, sacia o amor, a união e a força para os seus projetos.

É nas páginas dos livros que encontra refúgio e será através das suas palavras que procurará deixar um legado. Conta com a participação em várias coletâneas e revistas digitais, enquanto contista. É cofundadora do podcast «Livros a três» e desenvolve um papel ativo em projetos de formação de Escrita Criativa e na divulgação da importância da leitura.