No Princípio Era o Verde

de Susana Silva

 

 

O verde acolhe-te no seu ventre, tornando-se no branco infindo aos teus pés. 

Caminhas sem tocar o chão, atentas a cada ruído, cada estalar gelado. Danças e permaneces na escuridão. A cada passo, o suspense de algo a quebrar retrai-te. Paras, mas a brisa corrói a tua pele, os teus átomos, e tu avanças. Susténs uma corda sobre o ombro e caminhas, arrastando o peso que a ela se prende. A grande caixa é um enigma para ti. Conheces a sua forma amorfa vislumbrada pelo canto dos olhos, mas não o que contém; conheces o áspero que te sangra as mãos, mas não o que ele carrega. Não recordas o início, mas as tuas solas estão gastas, a tua roupa são farrapos. A carne queima, e tu não sentes. E continuas a caminhar. 

Pedaços de candura tocam-te. Flocos que acariciam o teu cabelo. Primeiro, poucos; depois, tantos; depois, nenhum. Respiras fundo, com dificuldade, inalando todo o ar que consegues. Inalas de novo, mais fundo. Cristais aglomeram-se no teu interior, encontrando um lar nos teus pulmões. 

Ajoelhas-te e dobras-te sobre ti próprio. Um manto álgido e delicado ampara o teu corpo. Abraças-te, procurando um pouco de calor, algo que liquefaça o frio. Tens uma chave a pender do pescoço. Agarras o objecto entre os dedos como quem reza, mas não pronuncias uma palavra. Apertas forte. Inspiras fundo. Ergues-te e continuas. Vultos imóveis aguardam no alto, escuros de encontro ao negro. Pequenas singularidades iluminam a escuridão, mas não existe norte. Passo após passo, há linhas vermelhas a perseguir-te.

A aurora rodopia no breu, iluminando o caminho. Traços de violeta, índigo, pedaços de azul, filamentos que se desvanecem no teu rosto. Verde. O quente surge ao fundo. Laranja, tanta luz. Fechas os olhos, combates o negrume e vês todos os teus passos, cíclicos, incalculáveis, que te rodeiam traçados a sangue no acetinado puro. Olhas para trás, na direcção da caixa. A amarra descansa agora. O fardo que te acompanha é palpável, real. Um ataúde. Lágrimas rolam-te pela face. A dor emerge de algum poço fundo dentro de ti.

Surgem fragmentos de memória. A madeira reflectida nos teus olhos. O ar que se extingue aos poucos. A melodia a cinco tempos. O cheiro a terra molhada que cobre a tua prisão e abafa os gemidos que ecoam. Gritas, mas a tua voz perde-se entre os inúmeros grãos que sobre ti descansam. Aceitas todos os seres que te consomem, que se alimentam daquilo de que és feito, a tua matéria, a tua essência, todos os dias até não restar nada da coisa que és, que foste. Aceitas o interior da jaula de cristal. Os gestos repetidos, eternos. O caminhar solitário.

Olhas o azul, a grande massa amarela. Ao fundo, a floresta aguarda-te, mas sabes que nunca a poderás tocar. Fixas a chave nas tuas mãos gastas e abres a caixa. Observas os teus olhos vazios, os teus traços velhos, as pernas que te carregam, vezes e vezes sem conta, inumeráveis. Fechas a caixa, guardas a chave e caminhas. Aceitas o teu fado. O peso agiganta-se, a carne rasga, a solidão gelada conforta-te. Estás em casa. O carmim funde-se no branco. A noite extingue o laranja. As linhas são esquecidas, e tu, de corda ao ombro, recomeças. Tu, o teu eu, o gelo e o verde.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945


 

SOBRE A AUTORA

Susana Silva

Susana Silva, também conhecida como Susie Saint-Claire, nasceu em Lisboa, mas foi Évora a cidade que a viu crescer. É oceanógrafa física, mas desde cedo que a escrita mora na sua gaveta. Em 2021, o seu conto de estreia, «O Palco Vazio», integrou a antologia de contos de terror Sangue Novo. Para Susie, a escrita é uma forma de expressão sensorial, que usa para pintar imagens aprisionadas na sua mente. Mergulhar na sua prosa poética é descer a um mundo de escuridão, melancolia e tempo…